SONHAR COM FUSCA DÁ BODE

Astrogildo nasceu de um sonho, ou melhor, em um sonho. Sua mãe, Eudóxia, dormia e sonhava que teria um filho esperto, forte, inteligente, belo  e outros predicados de menor importância, todos favoráveis ao futuro bebê. Seu pai, Normando Figueira, viciado em jogos de azar, notadamente o trinta e um,  estava num barzinho mal afamado das redondezas curtindo um carteado dos bons e tomando umas e outras para ganhar coragem e apostar alto. Depenado,  voltou para casa furioso e, ao deitar-se,  notou a mulher no maior sono com um ar de profunda satisfação, bem a vontade. Sem preliminares a possuiu semidesperta  e foi precisamente do ato que Astrogildo deixou de ser apenas alma para ganhar um corpo físico.
O sonho e a vida real não se acasalaram  pois  Astrogildo nem chegou perto de ser a   Brastemp que o sonho revelava. Lerdo,  magricela, sem um naco da inteligência preconizada, feio para os padrões da época e das vindouras, estava mais para tanquinho do que para primeira linha. Mamãe Eudóxia porem via nele todas as virtudes sonhadas.
Uma verdade porem foi inconteste: Astrogildo cresceu com uma capacidade impressionante de interpretar seus sonhos, isso mesmo,  só os dele. Esse privilégio ficou patente na noite de sexta que sonhou que um time de uniforme preto e branco jogaria contra uma equipe grená e seria presenteado com uma jaca. Dito e feito, no sábado subsequente o Timão, com noventa e cinco por cento de favoritismo perdeu para o Moleque Travesso, tremenda zebra que deu ao Dudu da loteca o maior premio da época na Loteria Esportiva. Daí para a frente foi muito procurado e deu um prejuízo danado para os bicheiros da região que, inconformados,  chegaram a planejar finar o distinto mas, como era do conhecimento de diversas pessoas, inclusive de gente da policia que também fazia sua fezinha, recearam que a pratica do ato fatal conduziria a eles, desnecessárias maiores deduções. Fizeram então um arranjo  com o Astrogildo que passaria a esquecer propositalmente os sonhos não podendo, portanto, interpreta-los. Passou a receber uma mesada razoável e cumpriu o acordado. Espertamente dona Eudoxia aproveitou-se e vez por outra ganhava no jogo, isso quando o filho resolvia atender suas queixas pois segundo ela, santo de casa tem que fazer milagre sim. Astrogildo, no entanto, nunca a deixou quebrar a banca, mantinha viva a galinha de ovos de ouro. Afinal era ético, costumava dizer.
A vida continuava e os sonhos também, agora com um agravante. Astrogildo começou a ser perturbado por um  pesadelo interessante: Sonhava caminhar pela rua, avistava um fusca azul quando então ouvia   uma voz cavernosa que cochichava:
- Cuidado com o fusca.
A repetitividade do sonho começou a incomoda-lo, era rara  semana que não se repetia. Depois de uns seis a sete meses do fato rotineiro sem interpretação  convincente de sua parte começou a achar que aquilo era uma esperteza mental dada sua facilidade de elucidar os próprios sonhos, até em detalhes. Seria, como pensou, uma fantasia de sua cabeça, nada para se preocupar.
A vida continuava, a mesada idem e ele, aconselhado pela mãe, começou a trabalhar com entregador de folhetos em domicilio para não dar na vista, segundo ela, da origem de sua fonte de renda. Afinal tinham uma vida sem ostentação mas farta e cômoda.
Foi precisamente dois dias antes da Festa dos Santos Reis, quando entregava os convites para a festança da apresentação da Folia de Reis Estrela do Oriente, descendo a Central que Astrogildo avistou vindo no outro lado  da avenida o fusca azul. Chegou a rir da situação, um fusquinha mil e duzentos, ano sessenta e seis, placa PL-1210, igualzinho no sonho.  Vê lá, pensou, se isso é carro de tirar o sono de alguém. Ficou observando, deslumbrado, a passagem do fusca de vidros filmados, interior invisível. Sentiu então o impacto
Foi atropelado, no ato,  por uma Garelli ano oitenta.
Ralou-se todo. Quebrou uma perna, quatro costelas, dois dedos da mão direita, um da  esquerda, teve uma orelha quase decepada, ganhou um olho roxo, perdeu três dentes, verdadeira calamidade. Ficou estendido ali, no meio fio, socorrido foi por um cambista que, célere, tratou de avisar o  bicheiro pelo telefone do orelhão. Encaminhado ao pronto socorro foi internado com suspeita de concussão cerebral, tendo ficado em observação e conservado acordado. Logo, logo, apareceu o bicheiro todo afoito, querendo saber em nome de todos da classe se estavam livres do incomodo mensalista. Inconformado com resposta disse contrariado:
- Que droga.
Astrogildo recuperou-se. Sequelas do acidente o acompanharam e descobriu, já refeito, que perdera completamente   o dom de interpretar seus sonhos. Fez varias tentativas e nada. Sonhava com bicicleta de guidão aberto, dizia  dar  vaca, dava peru, com crianças correndo, cismava coelho, dava leão, com defunto, acreditava elefante, dava macaco. Dona Eudóxia ficou furiosa, achava que o filho estava dando nó na velha. Que nada, um apagador extinguira o escrito no quadro negro da mente de Astrogildo.
Verdade seja dita, só a mãe dele ficou sabendo da verdade, ninguém mais. As mesadas continuaram vindo regularmente e a vida continuou como era antes, sem maiores percalços pois o tratado  com os bicheiros tambem foi respeitada pelos filhos sucessores. Dona Eudóxia nunca mais ganhou no bicho, minto, ganhou apenas mais uma vez, quando o Carlinhos Cambista, tendo ela apostado galo, carneiro e leão enganou-se e substituiu o carneiro pelo camelo, tendo acertado o terno do primeiro ao terceiro, uma graninha até boa. Foi só.

 
 

BUENO
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