HOJE, AMANHÃ E ONTEM

Caminhava pela rua e ao aproximar-me de um cruzamento notei que a minha frente ia vagarosamente uma senhora já ida em anos. Retardei o passo e ela, conscientemente,  deu dois passos na faixa destinada aos pedestres, estacando de subito. Um carro, subindo a rua freou rente a ela, não sem antes buzinar e um palmo lindo de rosto surgindo da janela do veiculo trombeteou: - Cega e surda é? Não presta atenção ao transito? A velha senhora recuou, retornou ao meio fio e não disse palavra. Firmou-se no guarda chuva colorido e assistiu a jovem arrancar, deixar o carro estacionado sofrivelmente cerca de uns quarenta centimentros da guia pouco acima do cruzamento, descer estabanada e embarafustar-se na loja adiante. Curioso assisti a senhora notar a estapafurdia manobra da motorista e seguiu-la desde a descida do carro a entrada da loja, cenho carregado, mãos tremulas. Retornei ao tempo de infancia e confesso, cheguei a pensar vergonhosamente que ia ter briga das boas, imaginei o guarda chuva descendo sobre a cabeça da garota e desaforos saindo da boca da transeunte e eu, para não perder a encrenca desde o inicio, fui rapidinho lá. Assisti a velha senhora entrar na loja e localizar a linda moça experimentando sapatos. Acercou-se dela serenamente e perguntou: - Posso falar com você? - Não ve que estou ocupada? Diga simplesmente o que quer e se for de meu interesse com mais tempo falo com a senhora, respondeu a garota sequer levantando o olhar. -Voce deve querer muito falar comigo. Fez-me duas perguntas agorinha mesmo, não me deu chance de respondê-las e pretendo faze-lo agora. -Perguntei o que? Ai sim ergueu os olhos, notou a senhora, não perdeu a pose: -Ah, é a senhora da esquina. Se for desculpas que a senhora quer desculpo-me, pronto. Satisfeita? - Não, retrucou a senhora. Satisfeita ficarei respondendo as tuas perguntas. A jovem pos o sapato que experimentava sobre o tapete. Notou que as vendedoras e outros esperavam as respostas as perguntas que desconheciam, exceto eu. A contragosto a jovem assentiu afirmativamente meneando a cabeça: - Sou toda ouvida. - Primeiro, embora a faixa de pedestres fosse direito meu voce a invadiu, seu primeiro erro. Segundo arrancou de forma inadequada por tratar-se de um cruzamento e terceiro, estacionou o carro quase no limite da tolerancia de proximidade do meio fio. - E dai, a senhora fiscaliza transito? Pelo que disse ia responder a perguntas que lhe fiz. -Sim, continuou a velha senhora sem altear a voz nem o minimo sinal de constrangimento. Perguntou-me se sou cega e surda. Nenhom dos dois, minha filha, felizmente nenhum dos dois, embora creia que num futuro proximo tenha alguma dificuldade com quaisquer desses sentidos. Tanto sou cega que li, gravei e desafio voce a repetir, sem subterfurgio algum, aqui e agora, as letras e numeros de identificação da placa do teu carro. Surda acho que não pois deu para ouvir o som do teu carro em aberto tocando ai um destes sertanejos universitarios da vida. Perguntou-me se não presto atenção ao transito. Presto sim, ao transito e outros detalhes que muitos não notariam, tanto que notei voce uma jovem bem vestida combinando brincos, blusa, saia, cinto e sapatos, bem maquiada, cabelos exatamente cortados e adequados ao formato do teu rosto, joias verdadeiras. Toda maravilhosa, exceto a educação que teus pais na certa deram e voce jogou no lixo na primeira esquina, no corre corre do dia a dia, como acontece a alguns jovens que insistem viver um seculo em um dia. Tudo bem. Um dia, se nenhum incidente de percurso interromper tua trajetória voce notará numa despreocupada manhã ao olhar-se no espelho um pezinho de galinha, a barriguinha malhada mais saliente, alguns filetinhos azuis nas pernas, sinal evidente de futuras varizes, talvez uma joanete, um calozinho acolá, um tiquinho de celulite, algumas estrias e sentir-se-a literalmente despencando, mas não se inquiete, ainda não é o fim, apenas marcas de um senhor chamado Tempo. Olhe bem para mim, meu rosto vincado, minha pele flacida, meus olhos já sem o brilho dos teus, meus cabelos um pouquinho pretos por usar pintura pois resta-me ainda um minimo de vaidade feminina, caminho meio curva, tenho dificuldade as vezes lembrar-me fatos recentes do cotidiano. O guarda chuva é para proteger-me do sol e da chuva mas, a maioria das vezes é para apoiar-me nele, qual uma bengala. E lembre-se sempre: - Eu sou você amanhã. Silencio. A velha senhora do alto de sua dignidade saiu e a jovem, perplexa, não disse palavra. Saindo foi literalmente atropelada por uma garotinha de seus quatro ou cinco anos que fugia da mãe perseguindo, aos berros, um cão de rua que havia furtado seu pirulito . A envelhecida mulher quase caiu, apoiou-se ao guarda chuva, recompos-se, olhou a mãe que segurava a menina e, sorrindo divertida e feliz, disse simplesmente: -Eu sou ela, ontem.

BUENO
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