Pela manhã avistei uma traça robusta subindo vagarosamente a parede do quarto. Não resisti... com o polegar e o indicador afoguei a traça no lavatório com a bica bem aberta. Na hora do almoço, outra traça menor fazia o mesmo percurso. Entristeci-me, por achar que a menor procurava a robusta. Provoquei a orfandade de uma traça. Ensinaram-me a acabar com ela, antes que ela acabe com tudo à sua volta. É a lei da sobrevivência... Traça profética, lembra que tudo tem o seu tempo. Traça escatológica, aponta o fim. Olho as estantes, repletas de livros que juntei a vida toda. Lembro de Mateus 6: "Não ajunteis tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem". Protejo os livros, limpo os livros, escovo os livros. Mas, o próprio tempo, que é uma traça que não morre, cuida de torna-los obsoletos, mudando a gramática, as versões, as teorias. Olho o tempo, que traça a traça. Olho a traça, que traça os livros. Olho os livros, meus tesouros, que embora traçados pela traça, protegidos no cérebro aguardam a traça do tempo. O tempo, que é uma traça que não se mata. Ninguém mata o tempo. O tempo é que nos mata. Extraído da 2ª Edição do Livro A Menina da Casa Preta de Selma Nardacci
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