AUGUSTO DA GAMA BENTES

 AUGUSTO DA GAMA BENTES
Porciúncula. Ano de 1948 ou 1949. Eu estudava na parte da manhã e a tarde ficava na Agência Fiscal,  na entrada da ponte onde meu pai trabalhava. A disposição dele aproveitava para ler, fazer os deveres do colégio. Ele conversava com o Sr. Alcides, um seleiro que tinha uma loja e oficina ao lado. Era  no meio da tarde quando pela ponte vinha  um senhor magro carregando uma imensa tralha  acompanhado por uma mulher também magra com uma trouxa equilibrada sobre a cabeça. Trazia uma criança no colo e era acompanhada por  três crianças de idade indefinida como costumam ser os pobres e mal alimentados. Talvez 10 ou 12 anos o mais velho da escadinha. Todos negros e a mulher  grávida. Andavam apressados ,as crianças tentando acompanhar o passo. Quando ficavam para traz davam uma corrida assustada para se unir ao grupo. Em frente à  agência, um jeep vindo pela ponte em velocidade alcançou-os e deu uma fechada  no grupo.Dele saltaram dois indivíduos armados , um deles trazendo na mão um chicote de boiadeiro: longo e trançado.E aos gritos:
-Crioulo filho da puta! Você pensa que pode comer e viver a minha custa? Vão voltar e só saem quando acertarem tudo. Macacada filha da puta. Entra no jeep!
As crianças abraçaram a mãe e choravam sem emitir nenhum som. O homem  olhou em volta como buscando socorro e não o vendo abaixou a cabeça indeciso entre a revolta e o medo e caminhou lento para o carro.
-Depressa safado de merda ou te corto no chicote!
Meu pai atravessou a rua lentamente medindo os passos e perguntou, pausado e educadamente:
Boa tarde senhores. O que está acontecendo?
-Não é da sua conta!Meta-se com sua vida!
-Engano seu, meu pai falou. -Tudo que acontece nesta rua, em frente a agência é da minha conta.Olhava firme para os dois mas mantinha uma distância estratégica.
O mais velho dos dois respondeu: -Esses safados compraram do bom e do melhor na venda lá da fazenda e fugiram sem pagar.
Meu pai falou calmo:- É. Os senhores estão com toda razão. Se devem, tem que pagar.
O ambiente parecia desanuviar. Um deles falou:- Mas o senhor vê. Na hora de comer comem igual porcos, na hora de pagar o dinheiro nunca dá.
Já mostravam aquele temor “brasileiro” por qualquer autoridade, real ou presumida.
Meu pai falou de forma firme e didática: Tem um detalhe, ninguém pode tomar a lei nas mãos. Vamos à delegacia, os senhores apresentam a queixa, documentação e ele será processado. Levá-los é cárcere, é sequestro, que são crimes.
Seu Alcides que acumulava o ofício de seleiro com o cargo de subdelegado num distrito da cidade, já estava  ao lado do pai e ostensivamente armado.
E falou: -Vocês são lá de Tombos , que é Minas. Então vocês não podem fazer nada aqui, Aqui é Estado do Rio.
Eles hesitaram se entreolhando. Entraram no jeep manobraram e foram embora. Não sem antes ameaçar:
Isso não vai ficar assim não! Vai ter volta! E sumiram numa nuvem de poeira da estrada de chão.
Minha mãe providenciou leite, comida para eles. Seu Martiniano da farmácia arranjou alguns fortificantes e vermífugos e o agente da estação acomodou-os no trem Noturno para um lugarejo onde tinham parentes.
E meu pai ganhou um admirador para toda vida. Dele e da minha vida. E espero que meus netos conhecendo esta história compartilhem dessa admiração e respeito.
Pedro Paulo da Gama Bentes
2013/01/20

Pedro Paulo da Gama Bentes
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