Ferrugem na dobradiça do portão,
alagadiça terra no quintal de brincar
e as mãos a moldar o barro-alazão
na razão de iludir o olhar.
Banana, bananeira, goiaba, goiabeira
poeira, vento e chuva de verão.
Tudo mais leve, na breve distração
das malícias, maldades, delícias.
Correr até o fim do dia
só para ver se no outro, homem já era.
Bobagem de quimera, fantasia,
mal sabia que irreversível seria a espera.
Foram flores, sóis, folhas e neves
sobre o tempo encantado das semi-breves.
Estava a cura entre os verdes ramos do jardim,
na mão da tia benzedeira, arruda e alecrim.
Reza de cabeceira, um galho de aroeira,
tinha de ser na sexta-feira para no mal dar fim.
E que tal? na panela da vó, era aroma de cabidela só,
serpentando no ar, atordoando os famintos
e dos quintos, brotavam vizinhos apertando os cintos.
Todos vinham, só não vinha o homem do saco,
de fato, pura balela, história para pegar matusquela.
Nem burrico, nem mula-sem-cabeça,
assombrações de espelunca, que ninguém as mereça!
Sobre a mesa, rádio ruidoso, almoço, sobremesa
mesmo rara, sobre a mesa aparecia somente aos domingos,
o paliteiro de flamingos era pinçado impreterívelmente.
A aguardente do pai debaixo da pia, de escaninho
o espiava, esperava o burburinho na cozinha acabar.
No tilintar da campainha, visita do além
e olhando porta afora, não se via ninguém.
Ah molecada da Cachoeirinha que não se contém.
- Dá um tempo cão vira-latas!
Essas patas sujas de lama vão manchar o meu pijama!
Saía o cão para a vadiagem tão própria de sua raça,
à caça de uma, para aumentar a descendência de baixo clero.
O lero desconexo do homem da escadaria
que de um lado para o outro andarolava,
soava estranho, mas ao mesmo tempo fascinava.
Narrava ele, feitos históricos dos idos de Pedro I,
mas um dia, tomou um ônibus para desconhecido paradeiro, sumiu.
Gatos, gatos, gatos.
A vizinha vivia cercada de gatos, tinha cinquenta!
E qual guerra se instalou sobre as invasões felinas,
que pelos muros baixos pulavam deixando obra fedorenta.
Sobravam xingamentos enquanto detentos não foram os gatunos.
Ainda no reino da zoologia, havia um carneiro multicor
que era trazido pelo fotógrafo, seu Antenor.
Nele, havia a ânsia de retratar a nostalgia
nas fotos de monóculo, que para sempre seriam consultadas,
mais e mais valorizadas a cada giro do calendário,
a cada vela de aniversário apagada e ruga sacramentada.
Mamãe pagava e saia satisfeita,
haveria de ampliar as fotos e rechear o porta-retratos
no ardiloso cultivo do papel morto, momento vivo.
E por falar em cultivo, havia algo no jardim a me deixar esquivo,
lá estava plantado o símbolo da autoridade materna,
algo a ditar a posição sulbaterna dos filhos.
- Corre menino, foge! Tua mãe vem aí com as espadas de São Jorge!
Realmente, não tinha pernas de correr,
esconder-se em algum canto da casa era inútil,
a mão própria da justiça era implacável e a surra, memorável.
Perdoável, perdoável...
A mesada dada pela tia, servia para o capricho das guloseimas,
apenas para atravessar a rua em direção ao bar, gastar, gastar
e de lá voltar com as mãos cheias de doces (alguns ilegais).
No mais, também descia pelas calçadas com uma bicicleta enferrujada,
curiosamente cor-de-rosa, sem dúvida, questionável.
- Mas cor-de-rosa é de menina! A Sabrina tem uma igual!
Dizia o pai tentando reparar o mal entendido:
- É tudo igual, essa é especial e tem câmbio automático!
Um tanto contrariado mas convencido dos benefícios,
com os resquícios da mesada, a pintura foi retocada.
O azul de menino haveria de impor respeito à molecada.
Fora de direção a pipa não obedecia ao comando da mão,
tão pouco o pé dominava a bola, servia só para correr, gastar sola.
Um dia ao acordar, estranhamente deu a voz de engrossar
desafinando as brincadeiras que se tornariam cada vez menores
nos arredores dos parques, nos pormenores da infância.
Quando a vida nos promove à outra importância,
não sabemos que a transição é elegância gradualmente ofertada.
- Não chore meu rapaz, haverá outras promoções às quais será capaz.
... e outras às quais seremos.
Minhas memórias de infância...São Paulo
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