Isso Daria um Texto...


ISS DARIA UM TEXTO...
 
Escrevo sem compromisso,  apenas aos sábados ou de madrugada,  quando perco o sono.  Durante a semana, tenho boas idéias, mas não anoto... Elas vão embora. Outro dia mesmo,  ouvi   a seguinte expressão,  que anotei apenas na mente: “Tem gente, que anda o  tempo todo olhando para trás.”
Pensei: Isso daria um texto.
Tive a experiência de assistir pessoas se digladiando por uma vaga no emprego, o que   também daria um texto.
Estou  olhando pela janela de vidro escuro... Só eu vejo, os outros não me vêem, me sinto uma Deusa, vendo pessoas que não sabem que estão sendo observadas. Isso daria um texto religioso.
Tenho uma visão privilegiada. Contemplo  um morro cheio de vaquinhas, elas andam de mansinho... Sabem do seu destino, por isso não correm. Isso daria um texto sobre a cultura oriental, ou quem sabe,  uma ode a ociosidade.
Amo usar reticências... Porque entendo, que tudo tem continuidade... Continuidade de continuar...
Isso daria um texto de português com direito a pleonasmo vicioso...
Eu admiro o capim. Todos querem acabar com ele, roçam daqui e dali. O boi come capim sem parar... Mas ele  está lá!  Sempre crescendo, esverdeando os campos,  mudando a paisagem. Isso daria um texto poético, mas prefiro metafórico.
Os que falam mal de mim, beijam minha face cinicamente. Eu me deixo beijar, mas automaticamente, lembro de Judas Iscariotes beijando Jesus no Getsêmani. 
Isso não dá texto! É repugnante, não merece nem reticências, apenas ponto final.
O Sampaio comprou  um cavalo,  sem orelha, de pequeno porte e muito manso. Todos estão contentes. Na brincadeira, comecei a botar “pilha”, chamando o cavalinho de “Sem Orelha”. Fui recriminada: “a gente não deve ter preconceito,  nem com bicho”. Isso daria um texto antropológico.
Quase não tenho tempo de usufruir o sofá da sala. Ele  fica lá,  arrumado a semana toda. Que valeu o dinheiro que gastei com ele,  se não posso usá-lo? Isso daria um texto sociológico. 
Olhei para o espelho,  vi uma imagem que não era minha. Uma mulher diferente. Tentei conversar com ela, mas  ela imitava os meus gestos. Isso daria um texto filosófico, Platônico, o verdadeiro Mito das Cavernas.
 
Tudo é motivo de texto,
texto é passível de tudo:
poesia, acróstico, crônica, enigma.
 
 
 

Enigma:
O capim,  não está nem aí,  para o que acontece a sua volta, continua crescendo.
“Sem Orelha”,  olha para o espelho sem preconceito.
Deusa olha para trás,  porque o passado é quem faz  a História.
Sem História,  ninguém briga por causa de emprego.
O sofá é o lugar das vacas que tem tempo sobrando.
Jesus assiste a tudo, pelo vidro escuro da janela.
O céu é uma grande janela.

                                       

 
 

Selma Nardacci dos Reis
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