Quartetos de São Luis (III)

A REBELDIA ELEGANTE

I

Fiz muita coisa neste mundo e vi coisas de arrepiar.
Íncubos e súcubos, lábios roxos trêmulos, o além túmulo.
Maus fluidos, minha gente, maus fluidos.
Muitas vezes pensei que o mundo todo estava contra
quando o mundo todo sangrava em guerras e ódios.
A religiosidade natural e revolucionária de Jesus,
que hoje sobrevive e enriquece, nenhum dos sábios guardou.
Maus fluidos, minha gente, maus fluidos.
Muitas vezes pensei que o mundo todo estava contra mim.
A força conservadora e catastrófica atribuída a Jesus,
onde está depositado o amor, o terror, nenhum dos profetas viu.
Maus fluidos, minha gente, maus fluidos.
Muitas vezes reparei que ninguém se importava comigo.
Quem pode competir em qualidade? Quais dos profetas foi sábio?
Nem Buda nem Omar, nem Abraão nem David,
nenhum deles foi perseguido político, nem acusado de má fé,
ou posto num julgamento indefensável, crucificado entre
ladrões e criminosos comuns. Então, como sobreviver?
Maus fluidos, minha gente, maus fluidos.
Muitas vezes caminhei dentro das ventanias e da chuva,

II

O Circo Garcia entrou triunfal na Ilha
e desfilou garboso pelas ruas da cidade
toda a troupe de chimpanzés africanos,
a família de malabaristas colombianos,
Los increíbles hermanos Martínez,
os palhaços Santropê e Santropinho,
o perna-de-pau, o engolidor-de-espadas,
o homem-sapo, a única mulher barbada,
os trapezistas russos Irmãos Kaxaturian,
– na verdade armênios, mas que importa?

Foi depois que me apaixonei pela cigana Nadja,
no intervalo entre a 1ª e 2ª partes do espetáculo;
quando leu o futuro nas minhas mãos e silenciou;
quando beijou lágrimas de ansiedade masturbatória;
quando o circo se desmanchou em pedaços pelo chão;
quando partiu em comboio ferroviário para Teresina;
quando deu adeus predizendo-me um futuro nada brilhante;
quando deixou para sempre eternamente cravados na minh’alma
os olhos verde-esmeralda mais lindos do mundo.

III

Quem será capaz de fomentar o mundo, torná-lo aprazível ao corpo e à alma?
Quando agosto passou deixou um rastro de tragédias e desgraças mínimas
Que de qualquer modo ocorreriam se fosse janeiro, novembro ou Carnaval.
O corpo do presidente Getulio Vargas estirado na cama no Palácio do Catete.
Uma carta triste que declara o poder perdido, a eternidade da história.
O poder inerente ao gesto sobreviverá nas palavras verdadeiras. Por que?
Canto porque tenho de cantar, mas quase não se pode andar nas areias das praias.
As dunas estão cercadas, os mangues todos têm dono, as praias estão dominadas...
Caminhamos por ruas que não são nossas, nesta terra de ninguém e de todos.
Mude de vida, alguém dirá, mas gastamos grande parte da energia sonhando.
Suspirar de olhos abertos, revolvendo no passado sementes que não germinaram.
Idealizando o futuro sob medida que é, na mais feliz das hipóteses, um desperdício.

IV

Na pior! Entre a cocaína e o ópio!
Ata-nos aos hábitos que queremos mudar.
Sentimos e sabemos que todos são um.
Porra! A paz da mente será nossa?
Algum temor: teremos de perdê-la?
Planos ambiciosos sempre desmoronam.
É melhor ir devagar, cara, persistentemente.
É errôneo pensar-se prisioneiro do dever.
Tudo é divino, diabólico, como um executado.
Seja calmo, altivo, ativamente calmo. Caralho!
É de cortar o pulso, cair em silêncio, enforcar-se.
Alguém transcenderá o pensamento, alma?
A intuição funcionará? O conhecimento virá à tona?
Afundar o medo, amar o permitido, o caminho, o muro.
Vida espiritual sem dependência de pessoa,
de coisa, de felicidade é não transar a comunhão.
Poder curtir a divina dependência, sujeitinho,
é compartilhar a plenitude de Deus e do Diabo.
Irreal é reconhecer-se entre livre e cósmico.
Muito pior pretensão. Mais pior ainda é percorrer
o itinerário entre o álcool e o fogo dos infernos!
Sobreviver, na pior, cortar os pulsos, cair em silêncio!

Rio de Janeiro, novembro, 2003