OS FANTASMAS DE SÃO PANTALEÃO
(Para Ferreira Gullar)
I
As nuvens cinzentas querem enterrar de vez este dia,
como os carrilhões de cada uma das cento e cinqüenta
igrejas sepultaram de vez o dia de finados. Orarei.
Caminharei descalço sobre as areias da praia de Olho d’Água
até que meu corpo suado desfaleça em Araçagy.
Desejarei o som das Matinas de Finados, pedirei às flores
que enfeitem as faces alegres das comadres e o encantado
Cemitério de São Pantaleão fervilhará de morte e vida.
Ajoelhado selarei as pazes com Stª Terezinha do Menino Jesus.
Guardarei para sempre o semblante em sépia da mulher amada.
Irei embora, olhos vagando perdidos entre dias futuros e pósteros.
Lembrei, era setembro, chovia a chuva dos tempos antepassados,
as pistas do aeroporto estavam alagadas, intransitáveis aos vôos.
Pedirei perdão, sim, porque não cantei o sentimento do mundo.
São Judas Tadeu que o diga: não fui um bom samaritano nem coroinha.
Sei bem: foi dali que todos nós partimos um dia para navegar outras esperanças.
Sentirei pelos ossos que habitam os esquifes apodrecidos.
Terei o ambiente, um rosto lacrimoso, um soluço de despedida prematura.
Visitarei os túmulos perdidos entre as lajes coloridas e orarei aos habitantes.
Voltarei quando não for mais primavera, quando as águas se acalmarem
e o tempo aposentado estiver esticando as pernas ao longo da estrada.
II
Se te entregasses de mãos estendidas para as algemas do ódio,
como Bequimão o fez, seria um convite aos rumores
de que o destino não seria o cadafalso, mas esta história não seria uma revolta
tão docemente articulada e sim o ideal reconhecido de que aqui é outra terra, outra nova ilha.
Quem se renderia ao simples grito: – Aqui Del Rey! – e abandonaria o sonho de liberdade,
tão duramente conquistado em travessias oceânicas, náufrago de Deus, de destino incerto?
Os escravos choraram, as mucamas choraram, as maracanãs choraram,
o povo chorou revoltado pela perda de um líder tão levemente indefeso
que não resistiu à acusação de um passado incestuoso com outros deuses.
El Rey d’além mar, extenuado, roto, El Rey não sabe perdoar, só tem moedas no coração.
Assim se fez a lenda de que o sangue de Bequimão foi a fonte que germinou as revoltas
passadas e futuras e que a liberdade implantou-se nos jovens corações sem medo.
Assim São Luis se fez rebelde, napoleônica, francesa na fé, na arte, nas letras...
III
Derreando o corpo um bocadinho sobre o algodão macio e destorcido da rede,
me embalo para ouvir Hilda contar as histórias de bruxas e acontecimentos milagrosos
que ocorreram com a descendência da família Freire durante o reinado de Ana Jansen
e como Regina subjugou o amo. Quem é o escravo, o que chicoteia ou o que beija?
Enquanto a conversa azul não se inicia, ela, Hilda, que é vermelha em cor espiritual,
serve longos sorvos e beijos deixando interrogações no ar das divagações sobre o que é ou não. Verdade? Lenda? O corpo negro, largo como das mucamas aposentadas,
a cabeça coroada com o turbante branco, eis como Hilda reina sobre todos.
Quem foi alforriado? O branco que se acorrentou ao coração da negra ou a própria?
O sol explode purpúreo igualzinho como o deixei há anos e sei que a noite virá,
aquela que é a mesmíssima noite de ontem, com a outra estrela que muda de cores
com um ar indefectível, esnobe, de milagreira. De longe chega o canto molenga
dos pescadores em arrastão lá longe na praia de Araçagy, escorando os peixes
que a maré bate nas areias. Quem se diz mucama? Hilda, a filha ou a neta?
Na avançada noite é a madrugada que traz o canto das sereias da Praia de Araçagy.
Os pescadores se foram, a maré recuou quinhentos metros, a única luz é a das estrelas,
a do Farol de São Marcos que será substituída pelo sol. Amanhece. Descubro o corpo de Hilda
sob o lençol alvo, a negrura da noite havia toda se transplantada para a pele dela
e aí sonhei que era mesmo o milagre do reencontro. Quem é o Senhor e o Amo?
IV
A tribo dos índios tupinambás conseguiu sobreviver aos séculos ali ajuntados
numa taba de poucos hectares entre mandioca e milho, juçaras e tabocas, monos e micos,
dormindo ao som do urro da onça pintada, enquanto as araras serviam de adorno ao goiabal
e beliscavam os jenipapos que espocavam no chão. Para o enterro na noite escura.
Macunaíma é levado na rede para a última morada...
No entanto, todos se dissiparam quando ganharam casas com telhados de amianto,
rádio de pilha e TV e hoje vivem por aí tomando umas cachacinhas, umas tiquiras
e sendo assassinados toda vez que ousam trepar com uma branca filha de classe média.
Ah, primo, se fosse nossa essa tribo que também se dispersou pelo mundo afora,
algures e alhures, aquém e além das fronteiras, se fosse nossa essa semente ingerminável
de pulmões febris atacados pela tuberculose, saberíamos sobreviver honradamente?
Rio de Janeiro, novembro, 2003
Licença
Sob licença creative commons
Você pode distribuir este poema, desde que:
- Atribua créditos ao seu autor
- Distribua-o sob essa mesma licença