miBorges.com um e-poema de Sandra Pien (I)

(Tradução: Salomão Rovedo)
 
E Deus o fez morrer durante cem anos, depois o reanimou e indagou:
- Quanto tempo estiveste aqui?
- Um dia ou parte de um dia, respondeu.
Alcorão, II 261
Paráfrase do conto “O Milagre Secreto”, Ficções, J. L. Borges 
 
Canto I
 
Eu te convoco poeta
disse Borges
ao eterno retorno
urdidura remota.
Numa cama de hospital
Borges delira.
Aconteceu um acidente tolo
escadas ascendentes temporárias
esconderam uma janela cruel
profundo corte
vermelho profundo
sangue no calendário indiscreto
goteja 1938
no final de dezembro.
Imagens em filigrana
paradoxo em sombras febris
ele sabe
não é o rio de Heráclito
perambula deixando repousar
seu corpo imóvel
bengala em mãos
tateando perpetuamente o muro
eterno.
Faminto de atividade em seu espírito
elétrons girando nos núcleos
bilhões de vezes por segundo.
Borges delira
sonha o desígnio
de um só poema atemporal.
Balbucia
não recebemos os feitos
só o seu reflexo em uma consciência
e a paixão
com os feitos sensíveis.
Invoca a Shelley
to illumine our tempestuous day
insiste em se duplicar
não só os sentidos
são falsos testemunhos
a imaginação
não alcança imaginar
a verdadeira forma da natureza.
Septicemia dizem os doutores
Hipertemia e desesperança
o tempo é uma ilusão
declara-se um conflito.
Sou um espelho perdido do meu pai
conhecedor do poder do canto
dimensão existencial básica.
Borges revive na minha mente
o jardim de utopia.
O odor dos eucaliptos
na memória
o transporta em mim
para Adrogué
simetria idônea do ócio das
tardes.
Sou peregrino repete
voz e destino de mortal.
 
Canto II
 
Sonha-me que o sonho
virtualiza em mim
letras convertendo-se em palavras.
Somos um e três com Whitman
cada pequena pedra
espelha a glória
do grande princípio
do último mistério.
O Vitor Hugo de Borges
batalha em mim
com seu Rousseau
toda a natureza
é o caos em harmonia
instável ordem
de complexas seqüências
temporais.
Borges se aliena
descende ao nascimento
para conjurar a cabala
linguagem anterior à criação
leite materno estudioso da
escritura
cem anos à frente
desde 1899 aturdida lança.
Acolá o ponto lírico
situado dispõe
do tempo circular
um poeta é todos os poetas.
Revolve na idéia de seu Platão
aquela cópia de cópia
e celebra
sou a sombra da sombra do poema.
Sinonímia quase sorrindo
bardo rapsodo trovador
jogral cantador aedo
troveiro declamador sou.
Trinta e nove anos de febre
remetem a outros trinta e nove
pequena distância cosmológica
e ela me sonhará que a sonho poeta
filamento talvez aceso
nesse sortilégio eficaz
temporal porta cancela
da substância de que sou feito.
O azar será o emblema
impossibilidade de conhecimento
humano
porém outra lógica
talvez espinoziana
diferente casualidade.
 
Canto III
 
Esse é um invisível fio
mistério invulnerável
caminho escuro
sensação de solidão
já conhecida
habitando um leito estranho.
O pátio axadrezado da infância
retornou em mim sua presença
compartilharemos Palermo
seus punhais maldosos
com seus cravos carmim fantasmas
sussurrou
percorreremos velhos sermões
ofertórios galantes
na alma do subúrbio
rituais daquele homem tênue
na figura de Carriego
– citá-lo é revivê-lo –
Em seu sonho concatenado.
Borges se exalta
demorado silêncio precoce
a matéria é permanente
sem estrutura
idéia de fóssil
lembranças da origem
o universo contém sua história.       
Tomaremos parte
dos pesadelos de Kafka
e de suas obsessões
a parábola sucederá
à confidência.
Por essa afinidade do azar
nos visitará também
o nobre que assistiu
a Keats e antes a Ovídio.
Recitaremos aquele hino glorioso
do senhor do espaço
e do tempo saturado
de magia hindu
assim essa dor física
minha e de todos
fará com que a alma esqueça
seus outros infernos.
 
Canto IV
 
Esta cama se faz de amarras
armadilha e vínculo
entre espiritualidade e matéria.
Esta noite perdi
a capacidade de falar
bestas selvagens me perseguem
porém ainda resisto obstinado
me eterniza o prazer de pensar.
Borges se excita
relembra uma dívida antiga
com a mão esquerda
desde a batalha de Lepanto
e a recoloca neste delírio.
Ressuscita Alonso Quijano em mim
tão genial cavalheiro
infinita fonte de inspiração
se refazendo em nós
em pele a leitura
de centenas de cantares
de gestas de fidalguia.
Nada de tergiversar romances alheios
me disse
deste calafrio inventarei
neste mais tardar perpétuo
um tal de Pierre Menard
também autor do Quixote.
 
Canto V
 
O enigma da biblioteca
ser universal
pode se reduzir a palavras
elas se encontram
fantasiadas difusas
em suas prateleiras gavetas estantes
talismã invisível
para evadir tristezas
com novas pupilas sob um novo
sol.
Alguma vez direi
se alguém leu um livro
o livro é parte desse alguém.
Será textofagia?
Seu humor se cruza
com a Enciclopédia
imperecível cosmos
indomavelmente arquivado.
Meu triplo colega
em mim o evoca
bibliotecário cego e escritor
se pôs em marcha
para me demonstrar sua simples tese
o movimento existe.
Nesse persistente devir
me transporto ao leitor voraz
da biblioteca de Alexandria
imanente em meu mortal talento.
Minha metáfora do vislumbre
da humanidade
hoje é a arte
possuidora força
de eventos e de leis.
Mallarmé confiou-me seus dois segredos
o mundo existe para chegar ao livro
o primeiro sussurrou Borges em mim
o outro clama
o encanto da poesia
está em descobrir pouco a pouco.
 
Canto VI
 
Confusão
manhã impossibilitada de bússola 
neste extravio acidental
agonia de três noites.
Borges persevera em ser Georgie
em não se dispersar
não enlouquecer
em silenciosos solilóquios.
Sonhemos me impele
sonhemos uma relação de opostos
contradição
entre tempo e eternidade
entre relativo e absoluto.
Um labirinto existencial
está presente em mim
desconcerto
símbolo em nove letras
perplexidade do homem
por encontrar a saída.
Janelas aparentes
fustigadas da realidade
desolado arvoredo
encruzilhada e pacto incerto.
Bifurcações infinitas
curvas exíguas
cadeia ilusória
eternidade escondida no abismo.
Daqui desta cama tormento
libertarei hoje
os olhos gradeados dos tigres
oceanos de relatos
buscando a voz desta terra
regressão da memória
à compartilhadas ficções.
Desde menino
se confessou em mim
estimava surpreender
com fugidias ortografias fonéticas
elas me conduziram
again and again ao labirinto.
Uma tarde Borges se encontrou
ali cara a cara
com um homem
agitado sudoroso
disse a mim chamar-se
Leopold Bloom.
Abatido
havia perdido um dia em sua vida
um 16 de junho de 1904
lento niilismo
fronteira manchada de ambigüidade.
Outra celebração do mundo
começará quando acordarmos
deste sonho único ilimitado.

Apresentação da poeta argentina Sandra Pien, na tradução do seu poema \\\\\\\"meuBorges.com\\\\\\\", escrito para divulgação exclusiva pela internet e meios eletrônicos afins.

Buenos aires, Argentina

Salomão Rovedo
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