Quartetos de São Luis (II)

A BONITEZA DA ILHA

I

Os candelabros do salão nobre do Grêmio Lítero-Recreativo Português refletem a luz no espelho eco dos soalhos caprichosamente encerados.
Mme. Bourgeois ao piano acompanha o recitativo de peças literárias, algo menos brilhantes que os pingentes de cristal. Esta noite Luciana vai declamar...
Porque aos ouvidos atentos e conservadores da platéia, fluindo dos seus lábios verdes, os versos de Camões ficavam modernos e rebeldes:

“Oh! Que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei c’um duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando c’um penedo fronte a fronte,
Que eu pelo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo
E junto dum penedo outro penedo!”

II

Pessoas que se interessavam [e não] por pintura, música, literatura e pela arte de representar, são as pessoas que ali se reuniam nas noites de sábado e feriados. Luciana não somente era uma grande amadora das letras e do jornalismo, era também magnífica, sabia explorar o perfeito perfil de falcão, os olhos negros franceses, os lábios consumidos pelo fogo, o rosto ovalado muitas vezes fotografado para as colunas sociais. Os ouvidos espantados da platéia não sabiam de onde surgia aquele Rilke:

“Orgulha-te: eu levo o estandarte,
não te preocupes: eu levo o estandarte,
ama-me: eu levo o estandarte.
Depois, mete a carta na túnica, no mais secreto lugar, junto à pétala de rosa.
E pensa: daqui a pouco estará perfumada.
E pensa: talvez um dia alguém a encontre...
E pensa:...
Porque o inimigo está perto”.

III

Se a voz tivesse cor, a voz ganharia cor se não a tivesse. Nada havia nela daquela frivolidade dos antigos exprimida pela palavra “diletantismo”, às vezes dava a impressão de uma mulher consumida pela ambição, ou mesmo por uma doença romântica. Como se a voz fosse possuída de alguma dor. De onde vinha aquele Eliot dramático que abalava os casarões e as ruas estreitas libertas do limo?

“Em meu princípio está meu fim. Umas após outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhas madeiras para novas chamas,
Velhas chamas em cinza convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas”.

IV

A platéia gemia de dor e medo quando Luciana era anunciada a declamar...A voz tropical, fervente como o suor dos sovacos das damas, delatava o ódio nem sempre socialmente debelado pelos leques rendados. Ela deturpava Manuel Bandeira, calando o olhar noutro olhar feminino, a voz morna das manhãs tropicais silenciando o próprio som do piano grave de Mme. Bourgeois, sexo de tom mais sensual ainda:

“Olhei para ela com toda a força,
Disse que ela era boa,
Que ela era gostosa,
Que ela era bonita pra burro:
Não fez efeito.

“Virei pirata:
Dei em cima dela de todas as maneiras,
Utilizei o bonde, o automóvel, o passeio a pé,
Falei de macumba, ofereci pó...
À toa: não fez efeito.

“Então banquei a sentimental:
Fiquei com olheiras,
Ajoelhei,
Chorei,
Me rasguei toda,
Fiz versinhos,
Cantei as modinhas mais tristes do repertório de Catulo Cearense.
Escrevi cartinhas e pra acertar a mão, li Elvira a Morta Virgem:
“romance primoroso e por tal forma comovente
que ninguém pode lê-lo sem derramar copiosas lágrimas...”

V

Antes dos derradeiros aplausos soarem Luciana anunciava como fecho de ouro “um poeta mineiro da última geração de modernistas”. Antes que todos murmurarem o nome de Carlos Drummond de Andrade, declamava quase em transe:

“Se essa orfandade, essa privação de tudo, se esse escuro exercício do nada
ao menos rebentasse num verso nu, esguio, sujo de terra,
– raiz arrancada em convulso estremecimento,
não da gelada lucidez do pensamento,
mas da viva carne da aflição, –
e a cegueira fora-me outro modo de enxergar.

Mas não. A falta de luz na alma e no olhar,
a perda de tudo (de um tudo que não é meu), menos o náufrago vivo sempre e para sempre frio,
e tudo apenas isto, este acontecimento que estala os ossos.
Ou estas palavras: sal, areia, surda pedra, geladas lavas
em que não nasce fonte, avaro fruto, espinho amargo.

O escuro, o ralo sol, o sufocamento no vácuo triste,
a forma bem morta, a forma disforme no livro, na carta, no peito largo,
no assoalho, na rua, na lâmpada, na mesa.
Forma que não é forma, nem feiúra nem beleza,
Água que não matará nenhuma sede, chão que nada enterra,
Estacado pensamento, gesto cortado no braço que o fazia,
Obrigatório sono dentro do leito perpétuo e frio”.


E um “Ooohh” de admiração corria quando ela anunciava como autor dos versos um ilustre desconhecido: Abgar Renault.

A voz límpida de Luciana, de clareza transparente como os véus de Salomé, líquida como a limpidez dos cristais, renovada como a voz preta que sambava ao som dos atabales da Casa das Minas, festejando outros cantos não nominados, por sempre subversivos devido à natureza erótica ou revolucionária, eram apenas suspiros nos saraus íntimos e libertários da sociedade Grêmio Lítero-Recreativo Português.