Comprei um avião pr'as minhas viagens.
é grande e reluz, e brilha mais
que o sol redondo...

Comprei um avião
novo em folha, sem janelinhas.
E viajo, muito viajo,
sem passaporte, prá lá e prá cá,
prá cá e acolá, na minha cabeça,
a minha calota.

Pr'atrás do quiasma
persigo sempre a incerta rota, e
mole flutuo na horizontal, embalado
pelo hálito sutil das minhas veias.
Na terra amada circunvoluta
sou rei suave, absolutista
e exterminador.

O calor-quentinho não me aflige,
e nem a possibilidade da dor.
Sou profeta falastrão,
e conto nos dedos,
pros meus neurônios,
os éons, os milhares de anos
e até os segundos
que ainda me restam
aqui na calota.

Comprei um avião novo
estroboscópico
pr'a ir pelo crânio em cruzada
incessante e inexorável -
prá apagar, úmido,
as luzes baças e cores
extraviadas do olho afora.

E trafego trêfego,
feliz e falaz,
sem eira ou beira.

Perfuro e atolo
nos meus montículos,
poças e rasos e recessões;
basta vir a noite, com seus
reflexos dourados-misteriosos,
e lá vou eu...

As cores são indescritíveis,
e das meninas levanto, impudico, o véu
das últimas e mais recônditas incertezas.
Os meninos, os afasto com desdém,
como moscas poisadas na ferida.

Mas logo em seguida,
rei bondoso, justo e gregário,
a todas e todos abraço, e em seguida,
com o gume toledano afiado do meu aço
demando vênia, paz, diversão, ouro e comida.

E as invenções que invento pra todos são sempre
inacreditáveis e feéricas...
... e os giros sábios cerebrais umedecidos
fazem mesuras ao rei temerário;
e as veias e capilares e valas e pregas
e os nervos e os pulsares rútilos
quebram espinhas, todos, pra mim,
num êxtase puro
de casta cifose.

Circunvalado rei, sempre me homenageiam.
Curva e centro, raio e ponto eu sou,
régua e métrica, bússola
plano e volume -
como um estrangeiro ostrogodo
do século nove, na terra dos gentios,
sou todo-poderoso...

Como um saxão, nada entendo de nada.
Mas ao passar, alexandrino, tudo fica parado,
e nada se move.

E nada conto aos filisteus do ladefora.
Roubo seus nichos, dilapido,
escamoteio, trucido, parlamento
à socapa, adulo e minto, e
bebo da linfa, sorvo o sangue
dos que já sabem tudo
que eu não sei.

Mas maravilho sempre por minha trilha rubra
os que não me encaram no fundo sem luzes
do meu avião. E a viagem continua...

...até que me vasodilato, e a pressão
expulsa a minha aeronave, e caio dos céus
da minha abóbada. Tombo às cambalhotas,
bem no centro da minha grande cama
de dossel, e a dor-de-cabeça me sussurra,
me sopra, amorosa, que voltei à terra
das coisas previsíveis e lógicas
e completamente democráticas...

(E aí, nem sinto frio, bicho,
e nem calor, não sinto nada.
A profecia não se dará. No fim, renunciarei.
As cruzes, ah, as minhas lanças e lenhas
fálicas, súbitas, paralelas,
elas se incendiaram de vergonha,
em pronta resposta
àquele hálito torto e onipresente
da gente cinzenta do lado de fora...)

Todas as noites, bicho, no crepúsculo
dos meus reflexos dourados-misteriosos,
no final eu viro gosma

(e gosma espessa). Sinto apenas
que estou preso, multiplexado e alveolar.
Na minha calota, sou agora um Deus menor.
Mas estou a salvo, eu co'as minhas ervas-daninhas
e meus afazeres. Ainda a salvo do hospício branco
e dos dragões engravatados
que pululam incessantemente
fora de mim.)

Manifesto de um homem antigo numa sociedade moderna e totalmente cruel.

Rio de Janeiro, Búzios, num dia gloriosamente ensolarado

Fernando Naxcimento
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