Ciclope estrábico

Pra mim, já foi o tempo
das certezas absolutas e definitivas
(eu, que ia vencer fácil na vida, lembras?)
e das verdades acabadas.

Hoje, já não se ama, e
nem se presta mais atenção
nas pessoas. Está tudo confuso, e
nem tenho mais certeza
do que comi anteontem - cada vez
sei menos coisas, e as coisas
todas se embaralham muito,
quando penso em você...

(Já no final, quando brigávamos, te confesso que apenas fingia, era tudo fake, e nem sentia mais o calor e a raiva que, às vezes, me tomavam por completo - aquela fúria nossa quase homicida, meu bem, de santo ciúme, quando fabricávamos, os dois, discos-voadores com as coisas e os pratos, prá lá e prá cá, no nosso quarto. Aquelas brigas que terminavam sempre na cama, tu e eu, no meio dos cacos, abraçadinhos, úmidos de amor...)

Agora, tudo o que desejo é que sorrias. Só isso.
Anseio por uma brisa de alegria no teu rosto,
por mais cor na minha frente, no meu horizonte.
Agora, já nem conheço mais a minha reta,
ou pior ainda,

ohlho apenas numa direção, como um ciclope estrábico,
que sempre te enxerga em todas as coisas,
mas que olha desviado e fora do eixo,
e só percebe o que não presta e faz mal...

Há tempos já se foi de vez meu outro olho,
aquela fenda caleidoscópica que, antes do talho,
profetizava pra ti a ilusão, o sonho, o irreal, e
via a vida abobado e feliz,
porque te amava completamente...

Agora, tudo é só uma peça de teatro burlesco,
um ato solitário e falho, cujo fim
tragicômico está na próxima cena,
bem ali, na curva da esquina,
à vista...

Ah, querida, hoje sou só um olho cortado à navalha,
mero pastiche de algum filmeco surrealista.
Estou invisível: sou um coto, um decepado descrente
dessa nossa vidinha de merda.

Mas não tema, querida, que tua grande perda,
afinal de contas, não será tão grande assim...
E nem minha dor é lá também tão cruel,
que o que não quero de ti é piedade.

Garanto ainda pra mim,
acredita, algum bálsamo amarelo
pras minhas feridas, e cuspo sempre o fel
que teima em invadir, pelas manhãs, a minha boca.
Continuarei por aqui, nessa rua, fingindo sucesso
e felicidade pra todos, pra todo mundo.

Meu olho torto, que ele siga sempre
em frente, deslocado e rotundo,
exoftálmico, midriático, ventilador,
à tua cata, à tua procura. E sempre
vai ser assim.

(Mas já pressinto o fim.

Estás já meio desfocada, deitada aí, quase invisível, meu amor, e as brumas cinzentas da paisagem já te encobrem e ocultam pr’esse olho meu vidrado a visão mais querida - aquela tua imagem de há muito tempo, de menina cheia de vida, numa janela de trem, teu corpo lançado contra o céu meridional... Arriscavas então tudo!, rindo faceira pro mundo, gulosa e audaz, co’a blusinha de bolhinhas azuis, os cabelos dourados esvoaçantes naquele meio-dia, naquele ensolarado e perfeito dia de verão, há muito, muito tempo atrás...)

Rio de Janeiro, numa tarde-noite chuvosa...

Fernando Naxcimento
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