Tenho saudade de um tempo que não vivi. Nutro paixões por músicas que
ninguém mais canta: “Tu és a criatura mais linda, que meus olhos já
viram. Tu és a boca mais linda, que minha boca beijou...” Talvez,
poucos se lembrem dessa melodia. Mas de vez em quando, ela soa em minha mente como as Cinco Estações de Vivaldi. Então fecho os olhos e vejo o
passado... Guiomar, minha saudosa mãe, cantando à beira do tanque: “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria...”
Cantava e sacrificava os dedos na água sanitária.
Quantas mulheres ainda cantam enquanto lavam roupas?
Hoje, poucas mulheres lavam roupas no tanque; pois as roupas lavam-se sozinhas,  giradas freneticamente por um eixo, encarceradas numa caixa branca.
Presenciei um fenômeno misterioso, roupas revoltando-se por
não ouvirem o canto das mulheres. Fui testemunha ocular de uma
máquina de lavar, que de tanto trepidar, saiu andando pela área de
serviços por não poder conter uma rebelião em seu interior.
As mulheres não sentem falta do tanque, sinônimo de trabalho pesado,
horas à fio. Elas acreditam que a máquina foi um dos maiores inventos da
humanidade; e hoje,  desfrutam  horas no computador, mas não cantam...
Será que só eu sinto saudades do tanque? Não que eu goste de lavar roupas no tanque, mas era nele que a minha mãe cantava e me acalantava.
Reconheço que o trabalho era tão árduo e  que só mesmo cantando para aliviar o sofrimento: “Lava roupa todo dia, que agonia, na quebrada da soleira,
que chovia...”
Fui impregnada por canções de uma mulher guerreira, trabalhadeira, humilde e cheia de poesia...
Poucas lavavam roupas tão bem quanto Dona Guiomar. Antes do café da manhã, as cordas já estavam lotadas de bandeirinhas multicoloridas e ela satisfeita por ter iniciado suas tarefas. 
 

 
 

Selma Nardacci dos Reis
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