pela primeira vez tive aversão ao espelho
pois nunca a imagem me tinha sido tão nítida

eu, justamente eu,
que me julgava fortaleza inabalável
resquício indestrutível dos valores antigos
incorruptível
acima das tentações várias todas e quaisquer
eu que me julgava insurpreendível
sou pego de surpresa pelo meu próprio reflexo
imundo em máculas dos pecados que nunca cometeria
no mesmo espelho das confirmações de sempre
mas nu
ineditamente nu
surpreendentemente nu

pela primeira vez encaro meu fantasma de frente
achava-se debaixo do tapete da casa que habito e sou
estava tão escondido que era minha alma e eu não sabia
era minha alma que eu repudio mas quero
quero de peito mas repudio de cuca
e agora pela primeira vez a vejo nos olhos
fito seu olhar profundo que torna-se inegável
tão profundo quanto cruel
inegavelmente irreversível

acordei essa manhã sem máscara alguma
com minhas cicatrizes à mostra
só a visto denovo quando me afasto do espelho
pois amo demais essa alma com o peito
para sujeitá-la às cucas alheias
pois embora tenha se tornado impossível negar-me
sou por demais fiel ao orgulho e à vaidade
- e orgulhoso demais para falar em vergonha -
para afugentar com minha realidade completamente despida
aqueles que amo ou amo de cuca
(amo vestido)
amo sem saber como por que ou se

toda sombra que eu trazia e pisava
não é menos alma que meus altruísmos maiores
como não sou mais Deus que qualquer praga ou verme
nem mais suporto supor-me divindade

mas a questão é que eu
que sem saber fingia ser belo
fingia sem saber que só se é realmente belo
quando se é realmente

pela primeira vez sou realmente
embora de belo, pela primeira vez, eu não tenha nada

São Paulo

Victor Pimenta
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