"Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha consciência, rezara"

"Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha consciência, rezara"

E de lá do fundo de si mesma, após um momento de silêncio e abandono, subiu, a princípio pálido e vacilante, depois cada vez mais forte e doloroso: das profundezas chamo por vós... das profundezas chamo por vós... das profundezas chamo por vós... Permaneceu ainda uns instantes parada, o rosto sem expressão, lasso e cansado como se ela tivesse tido um filho. Aos poucos foi renascendo, abriu os olhos vagarosamente e voltou à luz do dia. Frágil, respirando de leve, feliz como uma convalescente que recebesse a primeira brisa.

Então começou a pensar que na verdade rezara. Ela não. Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha consciência, rezara. Mas não queria orar, repetiu-se mais uma vez fracamente. Não queria porque sabia que esse seria o remédio. Mas um remédio como a morfina que adormece qualquer espécie de dor. Como a morfina de que se precisa cada vez mais de maiores doses para senti-la. Não, ainda não estava tão esgotada que desejasse covardemente rezar em vez de descobrir a dor, de sofrê-la, de possuí-la integralmente para conhecer todos os seus mistérios. E mesmo se rezasse... Terminaria num convento, porque para sua fome quase toda a morfina seria pouca. E isto seria a degradação final, o vício. (...) Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.

O que fazer então? O que fazer para interromper aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e pura? O que fazer? O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e uniformes.

                       Clarice Lispector- Perto do Coração Selvagem

Eloisa Alves
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