Era uma noite de quarta-feira comum. Me sentia tão exausto quanto a bateria do meu smartphone, já abaixo dos 15 %, que deixei carregando na tomada sob a janela. A mesma janela em que eu estava desconfortavelmente, mas de bom grado, sentado à frente para tomar um ar. A sensação era tão familiar, que especulei comigo mesmo, se um dia se tornaria nostálgica. “Afinal, era uma quarta-feira comum, mas não banal. Aquela era a rotina de futuros psicólogos em fase final.”
Discussões sobre o estágio, teorias organizacionais, estratégias de recursos humanos, diagnósticos e planos de ações... Desliguei! Às vezes me dou esse luxo, sabe? Não que eu tenha dormido, embora meu corpo agradeceria se eu o fizesse, o gesto pareceria desrespeitoso. Meus colegas e certamente a professora logo recriminariam. Por isto, é melhor que eu desrespeite o meu cansaço e banque minha escolha de estudar, ao invés de ir pra cama. A minha mania é desligar do mundo concreto, deste que se apresenta aqui no presente. “Onde as ações são limitadas pela moralidade, do mesmo modo que impede-nos de voar a gravidade.”
Como disse, deliguei. Me afastei propositalmente daquele cenário só para contemplá-lo, simplesmente. Como quem visita regularmente uma galeria, somente para observar o mesmo quadro da semana passada. E nota que curiosamente o quadro já não é mais o mesmo, pois foi alterado pelo artista. São nuances as mudanças, mesmos elementos, mesmas cores, mesmos rabiscos, mas a técnica... Ah! Esta com certeza foi aprimorada, mas isto não é algo que seja visto claramente, apenas sensível. Coisa que os olhos jamais constatariam porque não é tarefa deles sentir, somente ver. “Sentir é coisa da pele como é um arrepio, das ocasiões de amor, tesão ou frio.”
- Rubem Alves! – Ouvi
- O quê? – Pensei e isto me fez voltar a concretude das coisas sãs.
Era uma noite de quarta-feira comum e as pessoas ali liam um texto, outro texto, texto de Rubem Alves, “Os Ipês-Amarelos”. Mesmos elementos, mesmas cores, mesmos rabiscos, técnica sutilmente aprimorada. Na maioria das vezes, lemos textos ou discutimos sobre como deixar as organizações mais humanas e consequentemente mais produtivas. Tinha a seguinte mensagem: “O que você ama define quem você é.” Na sequência veio a proposta, feita pela professora, para que escrevêssemos sobre o que amamos. “Se apenas aquilo que amo me define, se basta para dizer quem sou, amar é sublime”.
No texto Rubem Alves afirma ter “um caso de amor com a vida”, eu não sou tão ousado. Acho que nunca dei uma “cantada” na vida para que tivéssemos um caso. Meu sentimento pela vida é um "Amor platonicus", idealizado, sem interesse em ser retribuído mas, virtuoso. A vida, esta imensa galeria, repletas de quadros pintados e autografados pelo mesmo artista de sobrenome “momento”. O que posso dizer mais? Antes mesmo de me empenhar na tarefa já sabia o que escrever, bastava por no papel quem eu sou. Um visitante assíduo da galeria da vida.
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