A DÚVIDA DE UM SEGREDO (CONTO) PARTE I

A DÚVIDA DE UM SEGREDO (CONTO) PARTE I

Lá vinha o Valdevino, coxo, arrastando sua perna esquerda, como se puxasse um fardo, atormentado em claudicantes passos. Com o tempo acostumara-se com a deformidade, não congênita, adquirida por uma fatalidade, da qual pagaria para sofrer uma amnésia e esquecê-la para sempre.
 Com o andar manco já se habituara, afinal a capacidade humana em se adaptar às situações é surpreendente. Parecia que sempre teve aquela anomalia, não se pejava de seu andar irregular, embora se sentisse cansado. Seu caminhar  lento, carregando a cruz, não visível, mas presente em todos os momentos, remoendo as lembranças, pesadelos pessoais à luz do dia.
 Antes fosse uma cicatriz, possível de ser camuflada em qualquer parte do corpo, onde as vestes  cobrissem e não despertassem atenções.  Talvez até convivesse melhor com aquilo, afinal, pensava, não há quem não tenha suas marcas, ocultas ou aparentes, a cruciarem os seus dias.
 Assim que a tragédia ocorreu em seu torrão natal, voltando à vida normal, pediu transferência de local de trabalho, mudou de  cidade, e foi embora. Então, apenas os parentes, que vinham de vez em quando, já que ele evitava retornar, conheciam o real do acontecido. Guardavam silêncio para não melindrá-lo com recordações infelizes. Para os demais, fora vítima de um acidente de trânsito, não se recordava dos detalhes, pois apagara, só despertando com os primeiros socorros. Finalizava a prosa enxerida, mudava de estação, alterando as atenções. Inadvertidamente, somos atrevidos com as chagas alheias.
  Do que já vivemos, enterramos o que não interessa, mas as marcas, naquele caso, eram muito evidentes, físicas, visíveis. Como a relembrá-lo permanentemente, não lhe dando tréguas. Preferia não rever os que conhecera de infância e adolescência, de tudo sabiam, o enojava imaginar a lembrança involuntária que todos teriam ao vê-lo. Sua atitude passada, torpe e injustificável, o envergonhava. A ele bastava a inclemência de ser o seu próprio juiz.
 Era  trauma íntimo, onde a outros figuraria como relés curiosidade, levando-se em conta de que os dramas alheios, geralmente causam comentários maledicentes, julgamentos levianos.
 Contudo, driblando as adversidades dos olhares atrevidos, ao ficar à sós as cenas retornavam como num filme repetido inúmeras vezes. Evitava assistir na televisão cenas de amor, a remetê-lo em saudades e mágoas de pura descrença, ou pior, que focalizassem brigas e tiros. Experimentava suores a empapá-lo inteiro. O trauma era latente.

 

 

COMECEI A ESCREVER ESTE CONTO, QUANDO DEI POR MIM PASSAVA DOS 20.000 CARACTERES, O QUE ME LEVA A PUBLICÁ-LO EM DUAS PARTES.

GRATO PELO CARINHO DA LEITURA. * Selecionado para figurar no livro antologia CONTOS PREMIADOS, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, setembro/2014