AS DAMAS DO CAIS ( conto )

AS  DAMAS DO CAIS  ( conto )

 

 

O cargueiro deixava o porto, levaria semanas para retornar, João avistou Ana acenando para ele, quis levantar a mão para responder, mas deteve-se.  Ela era apenas mais uma profissional do sexo, encontrada em cada porto, não pediu que viesse para despedir-se, embora a fitasse distanciando-se...

 Não era homem dado a sentimentalismos, o que queria dela, obteve, de acordo com o combinado, nem mais nem menos. Sem dúvida tinha um porte belo, mulata de chamar a atenção, se tudo desse certo, poderiam se encontrar outras vezes, quando desembarcasse por ali. Não gostava de amarras ou compromissos, a vida o fez independente, da mãe ao concebê-lo, morta no parto, criado pelo pai, vaqueiro de uma fazenda.  Moravam em dois cômodos junto ao curral, onde se acostumara ao cheiro de estrume de vaca logo cedo, a cama um catre forrado com mantas de atrelar cavalos,  respirava o suor eqüestre nas narinas, achava bom.

 Até os 8 anos, brincava com o filho do patrão. Criança não tem diferenças, corriam para ver o pai, seu herói, passar tangendo o gado, no estradão levantando poeiras. O som do berrante enchendo a imensidão, soando no trotar da manada. Ficavam pendurados na porteira, até perderem de vista os peões.   Os dias de alegrias e folguedos, ambos correndo pelo pomar, catando ovos de passarinhos, trepando em árvores frutíferas. A distinção dava-se nas refeições. Comia na cozinha, o amigo na copa. No final do dia, recolhia-se para banhar-se numa tina d’água e dormir junto ao gado, enquanto o outro ficava na casa grande, banheiro interno com água quente, de amplas varandas, iluminada por gerador de energia, propriedade que avistava de longe, sob a luz de lamparina a querosene. Assim se delineava no seu imaginário a distância entre eles. Com o tempo, o amigo foi estudar na cidade, colégio particular. Ele, sobre o lombo de jumento, ia para a escola rural.

 Tudo acabou quando o pai sofreu um acidente de trabalho, não resistindo. Ficou definitivamente sozinho. Aprendera pouco naquela escolinha, o suficiente para ler e escrever, fazer as quatro operações de aritmética. Já era um jovem adulto, tendo que tomar suas decisões. Embora gostasse da vida na fazenda, tinha ambições, queria rodar o mundo, sempre ficava vendo a jardineira passar na estrada, lotada de lavradores que migravam em busca de novas oportunidades, entre uma safra e outra. Um dia, estava entre eles, tomando rumo incerto.

 Quis conhecer o mar, e foi paixão instantânea. Tanto fez que foi admitido como grumete, para serviços de carregador de mercadorias e de limpeza do convés do navio. Em cada porto, um passeio, uma aventura, uma mulher diferente. Corpo alugado aliviando angústias carentes, marinheiras euforias. Por módica retribuição era recebido, acolhido seus anseios e desejos, espaçados entre um porto e outro. Aplacava as fúrias, contidas nas ganas, nas luxúrias. A lembrança de  rostos, as águas levavam, como o lavar-se o corpo das impurezas após os atos. Nas águas viaja, à deriva de compromissos. Outras ânsias aplacadas, em cada parada, tantas que nem se lembrava, esquecidas, passadas como as marés, carregando suas carências e magoas.

   Ao adentrar o quarto, só queria o regalo das carícias, o saciar de suas necessidades, para tanto negociava o preço. O calor do corpo feminino, o perfume barato, demais não queria saber. De enredo sofrido e triste, bastavam as próprias experiências, o amadurecer prematuro, as lições marcadas no dia a dia. Dela cobrava o combinado, que ensaiasse um sorriso feliz na expressão marcada. Não falasse muito de si e de seus problemas, nada de reclamar de programa barato e da vida safada. Era um cliente, não um confidente de pai operário ou mãe doente. Não aprendera que seria fácil viver, vivia-se, assim eram as coisas colocadas no seu caminho. Nunca houve espaços para mimos, nem ombros para chorar o destino malfadado. O que ela tinha, ele queria, o corpo exposto, belo, sedutor deleite de todos. Havia os olhos quase infantis na cara de santa, aumentando o desejo. Ela significava um brinquedo, a diverti-lo na roda viva, num teatro de marionetes. Que manchasse a sua roupa melhor com seu batom vulgar, e tomasse de sua bebida, sem questionar seu paladar. Que viesse com suas carícias e o domasse, submissa, a sua fúria de besta reprimida...

 

Mas se detinha no convés a observá-la na distância, o motor da embarcação revolvendo as águas, lamacentas no início e depois azuis, emoções desencontradas. Ela tinha sido diferente, não mais uma. Por menos que quisesse admitir, não conseguia deixar de vê-la, se distanciando, parada, no porto, acenando.

 Com os olhos nublados, a lembrar-se saudoso do pai, tangendo o gado, e a esperá-lo chegar à noitinha, contando seus causos, parcas lembranças de afeto, órfão de mãe ao nascer, talvez isso não o tenha habilitado para o amor que ela propunha, sendo aquele mar entre eles  providencial para esquecê-la...

 Quis confessar a ela, que fora especial, quase a esperança de ter alguém para esperá-lo e acalentá-lo como um ente querido e todo seu. mas, temendo enfrentar situações novas para si próprio, calou-se, fazendo-se de forte e indiferente.

 A figura da mulher diminuía na distância, dando a ele as sensações mais estranhas, como as estradas percorridas pelo pai levando a tropa, sempre partidas e despedidas...

 A via se distanciando, consumida em lágrimas. Ele indo, impassível na postura, em convulsão interior se questionando, ela triste, sumindo no horizonte......

 

Amigos, visando preservar sentimentos, sem ferir suscetibilidades, troquei o título de AS PUTAS DO CAIS, PARA AS DAMAS DO CAIS.

** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.