O RELÓGIO NA PAREDE

 
 
Á, esse frio que me rodeia. Olho o relógio na parede e
suspiro, mas ele vai indo, repetindo, repetindo. E vou e me
deito, e vou e vou indo, dormindo, dormindo. Fecho os olhos e
tenho de abri-los, e me reviro, e ouço ruídos, e o tic-tac da
parede vem vindo, mas, eu, por que tenho de ouvi-lo, esse
tic-tac dependurado em meu peito que me faz pressentir o frio,
o frio? Batem-me os dentes e repito, repito, tac-tac de frio,
entra, sê bem-vindo. E desperto agasalhado, em minha boca o
gosto dos cigarros, da cola dos selos e do desabafo. E
novamente recostado ouço o rádio, e disfarço, mas já é tarde,
reconheço que minhas portas se abrem, e pela música assaltado
a reminiscência que me bate, malvado malvado, lembra de
mim e daquela tarde, lembra que foste cheio de desculpas para
a noite, não era tarde, não era tarde. E corro e estou sentado,
apanhando, apanhando o lápis, não, não é tarde. E escrevo
inspirado, inspirando aquela tarde, sim, era tarde. Mas apenas
agora, recriando o que foi embora, é que sei dar-me a tudo o
que não é de verdade.

MARCELO GOMES JORGE FERES
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