Perguntei a certa moça
de ar professoral
como era o beijo de amor
pra ela.

Queria começar pelo fundamental,
pela essência da coisa, sem cores,
preto no branco: pela prática, com ela,
do beijo.

Empreendedora,
e depois de um certo período preliminar
de aulas teóricas, a mestra compenetrada
deu andamento ao pequeno projeto,
à sua demonstração.

Pacientemente me explicou
o que entendia por beijo,
do perguntado: não de amigos,
nem de irmãos, mas o dos amantes
e dos apaixonados.

Olhos (começou), sempre ocultos,
no máximo semi-cerrados, apenas
deixando entrevista a linha horizontal
luminosa e líquida, sonhadora
do espaço pós-palpebral;

a respiração, levemente acelerada
(em certas vezes, interrompida),
e as mãos em contínuo processo
de pesquisa corporal e capilar
e no apôio anti-vertigem –
tudo na mais perfeita
sintonia.

Os corpos, colados:
reentrância com saliência,
mas nunca imóveis, sempre frementes,
para a necessária transferência
de energia térmica, alimentadora
dos enamorados
e do beijo.

Os narizes, Ah! os narizes!
fundamentais pros esquimós,
também têm seu papel transcendental
como balizadores, lemes de aproximação
para o contato inicial lábio a lábio,
boca a boca.

As bocas, disse-me a mestra, incisiva
(mas com voz já rouca),
estas são as estrelas do show:
conjuntas, acopladas, cúmplices,
móveis e sapecas; em suma,
vivas.

Devem amoldar-se uma à outra,
com charme, delicadeza, ardor
e suave violência, tudo
em alternância aleatória
e instintiva.

Enquanto isto,
as línguas podem se dar ao luxo
do enlouquecimento e da alienação;
para elas não há regras, nem diretrizes.

Apenas, devem estar cálidas, úmidas,
cobras criadas, felizes,
expansivas,
condutoras dos fluidos que dão
molho, tempero e paixão
ao beijo.

Após uma pausa, a mestra
tomou fôlego e, com o mesmo ar professoral
que impunha respeito e moral,
misteriosamente,
com a voz estranhamente
suave,

falou-me, num sussurro,
ao pé do ouvido,
da sua teoria inédita,
homoheterotransbissexual
do beijo na boca:

- O beijo, acredite, meu rapaz,
é democrático ao extremo.
Como ato sensual,
transforma seu praticante
em homem e em mulher
ao mesmo tempo;

como os caracóis e as minhocas,
o transmuda num ser hermafrodita,
convicto e militante.

Hermafrodita sim, posto que afinal
não há, no caso, côncavo nem convexo,
como ocorre no outro ato,
na tradicional peça
clássica galante
sexual
do ‘macho versus fêmea’.

Se eu te beijo (explicou),
te penetro docemente, e és minha fêmea,
mas se me beijas, e me penetras também
funda e simultaneamente,
és então meu macho,
meu homem... numa entrega
consentida, delirante
e seminal.

(E a moça se calou, me fitando
pensativamente.)

Busquei apoio em seu braço
e no seu olhar severo e inteligente,
e me deixei ficar, pleno de emoção,
no gozo dos meus calafrios
doces e intermitentes,
com o temor do aluno que cuida
de não interromper tão brilhante
explanação.

Então, subitamente, tão subitamente
quanto a desabusada pergunta inicial,
num ímpeto peguei na mão
da minha mestra,

e, bem junto ao seu ouvido,
fiz minha segunda pergunta,
com a voz igualmente
estranha e rouca.

E minha professora,
minha atenta mestra,
doce e ardentemente respondeu
(um tanto trêmula, um tanto fremente)
sem mais palavras, praticando
sua teoria com um beijo apaixonado
na minha boca.

A pedido de uma moça completamente ignorante na teoria do beijo, mas catedrática pós-doutorada na sua prática...

Rio de Janeiro dos beijoqueiros...