O que o mar esconde dos homens

A quem honramos ao visitar
Os cemitérios do passado?

Podemos sequer começar a comprender
Em seu intricado detalhe
As paixões e os delírios
Os acontecimentos que um dia moveram
Os mortos de hoje?

Apesar da eterna recorrência
Dos temas e das tramas
A delicada filigrana de cada assunto
Sempre foi e será, vária, única
O que ontem fazia corações vibrarem
Hoje, se não já largamente esquecido
Parecerá um tanto deslocado, frente
À luz nua e crua da presente realidade

O tempo, não contente
Em agredir corpos e mentes
Com sua infinita paciência, corrói
Enferruja, destrói as idéias de outrora
E a linguagem dos mortos parece, então
Deslocada, estranha
Sua beleza, um tanto exótica
Suas imagens, distorcidas visões
Descoloridas e embaraçosas

E, no entanto, os mortos falam
Em multidões, eles falam de seus túmulos
Seus livros, fotografias e objetos
Indiretamente impingem sua voz
Corrente marinha profunda
Caudalosa a princípio, para depois
Tornar-se murmúrio morrente e disperso
Ao atingir as profundezas do mar aberto

O mar, abismo do esquecimento
Vasto depositário do inconsciente
Ressoa com seu coletivo de sussurros
Aos vivos cabendo alternadamente
Auscultar e ignorar o seu bramido

E, ao final, a identidade dissolve-se
Nas águas corrosivas deste oceano infindo
Um berço, uma vala coletiva
Um abandono sem nome
Contraponto à vida
Em seu triunfo da individualidade
Momento breve do eu e do único
Do identificável e do concreto
Suprema ilusão
De que a praia e suas ondas serão mais
Que um cenário movente
Onde as águas exploram as rochas
Onde, porém, a areia
Com seus dentes polidos, recolhe
Para o remanso das profundezas
O gosto acerbo do que é ter sido
Terra e montanha

 

 

Uriel da Mata
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