A dança e a reza
 
Nesse palco feito de sonhos,os pés cobrem todos os espaços....
Enquanto as mãos seguram os xales,os leques e corações se abrem ao desconhecido.
As cortinas ainda não se abriram e já ouvem-se vozes nas coxias.
Mas quem esta lá fora não adivinha o caos que acontece naquele pequeno espaço, permeado de espelhos e luzes.
Aos poucos, uma por uma,elas vão chegando,espalhando suas roupas e maquiagens, deixando entrever flores e rendas.
Em algum lugar ouve-se uma risada mais alta, um rosto mais tenso,um olhar que se confronta no espelho, examinando-se reflexivamente.
Sobre o palco, metros e metros de tecido fino,diáfano, salpicado de estrelas sendo pouco a pouco pregadas a muitas mãos, enquanto uma saia solitária,gira em reconhecimento ao espaço que logo mais ocupará.
Em outro canto, há frutas, bolos, tortas, todo um sortimento de coisas
como se a festa acontecesse ali mesmo, sob a proteção das paredes.
E é quase um ritual de mulheres que chegam,vestem suas saias e prendem flores aos cabelos..
Nos rostos,um a um,vão sendo montadas as máscaras de sonho,cintilantes, douradas, de modo a não deixar transparecer medo ou dúvida durante o espetáculo.
Já não são mais apenas mulheres, são ciganas, são bailaoras,senhoras da roda e das cores,unidas em comunhão,compartilhando espaço e ansiedade,  vestindo-se de luz e de sombra, cobrindo seus corpos e os das companheiras como se fossem um só..
E enquanto a mulher de longos cabelos prende-os com uma bela rosa azul, outra veste-lhe a comprida saia florida e mais duas cobrem-lhe o corpo com um xale da mesma cor..
No canto da sala, as moças de vermelho ensaiam seus passos,comem suas uvas, agitam suas lindas saias e aquecem todo o espaço que há.
Aqui e ali ,em todo lugar, ocupando todos os espaços,sem parar um só momento, a moça de cabelos vermelhos prende os cabelos,solta-os, troca as saias,muda as flores, come uvas,ajeita o xale e guarda suas castanholas,tudo ao mesmo tempo, sem parar nunca de sorrir.
Há uma atmosfera densa,quase palpável de tensão e de espera,fazendo, com o passar do tempo, com que os rostos por vezes se contraiam e os silêncios se façam mais longos.
E então, imediatamente, há braços e mãos que se juntam, como a compartilhar uma força comum, para vencer o medo e fazer a magia acontecer.
Num instante o primeiro e o segundo sinal tocam,pondo a todos em pânico:faltam apenas alguns minutos para o espetáculo começar.
Os rostos se olham,conferem as saias,ajeitam as flores e sapatos e sobem as escadas que levam ao sonho.
Lá fora,não há espaço para o medo,há brilho e cores por sobre o breu do chão..
É preciso,entretanto atravessar a barreira do não,respirar fundo e mergulhar...
E então,ouve-se o lamento cigano,como uma oração que toma a todos,conferindo gravidade ao momento.. Por um segundo, o silêncio se faz.. .As mãos se unem,as moças se abraçam,ouvem em silêncio,quase religiosamente...
Subitamente, o aviso:o espetáculo precisa continuar...
Xales e leques em punho,segurando cuidadosamente as saias,os pés descalços, é hora de entrar..
No palco, a intensa luz refletindo rostos enquanto as saias giram, furiosamente e as mãos giram,ao compasso da música..
Mãos dadas,as mulheres giram no meio da luz, unidas pelo breve espaço, como se fossem um borrão de cor...
Somente ali, no ápice de suas cores e gestos, no encantamento do bailar encontram a plenitude de suas vidas..
Ali no palco,transformado em espaço de religação, encontram seus Deuses,fazem suas preces por meio da dança, giram suas saias em comunhão com o infinito,
tocam a mais ampla e insuspeitada liberdade de ser.....
Sob os holofotes do teatro a dança torna-se invariavelmente reza,refletida nos corpos e nos corações dos que se movem...
Naquele breve momento tornam-se definitivamente eternas ...

  

Tati Mendes
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