DESENCONTROS - 1ª parte (conto)

DESENCONTROS  - 1ª parte (conto)

 

 

 

O que o levava a apresentar-se naquele consultório, adentrar aquela sala em luz baixa, deitar-se naquele divã e rememorar a um estranho, homem sisudo e de poucas palavras, fatos que o marcaram em sua trajetória, numa viagem ao pretérito, como se desenrolasse em filme  suas reminiscências ? 

Chegar até ali não fora fácil, teve que vencer resistências pessoais e íntimas, sempre se considerou uma pessoa equilibrada, ciosa de si, e com uma auto-estima elevada, portanto imune àquilo que julgava destinado  aos fracos de ânimo. Ainda se perguntava sobre as razões que o levava a parecer falar sozinho, não fora a presença daquele analista, quase nunca o interrompendo, ainda assim de forma monossilábica, como uma breve pausa. Parecia atento à sua narrativa a tomar algumas anotações em uma caderneta. Sentia-se um rato em um laboratório de pesquisas. Aquilo era desconfortável, pagar para ser exposto, revendo lembranças, retornando fatos aparentemente triviais e irrelevantes.

Sujeitara-se a isso movido por dores morais que jamais imaginou sentir. .Seu castelo esboroou com a decisão terminativa do relacionamento conjugal. Posição unilateral, implacável, a seu ver injustificável. Parecia incrédulo às advertências e lágrimas, vistas amiúdes, no semblante daquela que amava, e a quem se consorciara em um casamento memorável. Os pedidos dela pareciam irreais, desnecessários.  Percebera-se sem chão, egoísta, ao não dar atenções aos reclamos de distanciamento implorados por ela, alegando sentir-se só com a convivência com ele, sempre atarefado e alheio ao mundo dela, confundida como um objeto da vistosa residência, sentindo-se uma inútil.

Cedo ela manifestou que gostaria de atuar na sua área, trabalhar e continuar seus estudos em pós graduação, mestrado, talvez um concurso para o ministério público ou a magistratura. Chegou a aventar a possibilidade de atuar na sua formação, advogando. Foram manifestações colocadas logo no início do casamento,

sendo, todavia, convencida pelas contemporizações do marido, até desistir de expor seus pontos de vista, parecendo concordar com ele. Fora vencida no silêncio, o assunto perdera a vitalidade, parecendo arquivado.

Imaginava fazê-la feliz, a  poupando de uma iniciante carreira de advogada, com todos os óbices que qualquer carreira inicial apresenta. Afinal, tinha uma situação financeira excelente, o que ganhava dava muito além do necessário para ambos, não tinha porque incomodar-se com nada relativo à sobrevivência. Todas as suas vontades poderiam ser supridas, nunca foi de regatear nas despesas. Tiveram uma tórrida paixão nos tempos de universidade, herdara como filho único a empresa da família, já constituída e próspera. Mas a percebia infeliz. Imaginava que tendo tudo o que precisasse, pela origem dela, família classe média, e de ter lutado com as dificuldades inerentes, a confortasse não precisando mais incomodar-se com as comezinhas necessidades.

Vencida em suas argumentações,já se apagavam os brilhos daqueles olhos que tanto admirava, o sorriso era raro, não espontâneo, quase mendigado. 

Presentes, viagens, o que ela quisesse, estava disposto a tudo para alegrá-la, como era ela antes. Não haveria porque ela se incomodar com trabalhos fora, não necessitavam disso, eram suficientemente abastados.

 Ela o olhava tristonha, como se fizesse um apelo , mas silenciava, era uma mágoa que se instalava naquele rosto jovial e belo. Principiava-se a ruptura da lealdade e do respeito, conspurcado por ele contra ela, na melhor das intenções. Ele parecia não ver um palmo adiante do nariz, talvez por ter sido filho único achasse que o mundo girava em torno de si mesmo, suas realizações não poderiam ser as delas, não era uma questão de dinheiro. Mas ele, possivelmente, não se conhecia.


( continua na 2° parte)

 

PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE AMOR & DESAMOR, EDIT CBJE RIO DE JANEIRO-RJ, JUNHO 2014.