Quando os dias se passavam vagarosos,
Numa lastimável monotonia,
Eis que vi chegar rapidamente
O momento de findar os meus dias.

Caminhando do farol no rochedo
Até a praia que abaixo se estendia,
Ouvia-se o insistente marulhar
Do oceano que desde sempre existia.

As ervas rasteiras e o capim seco,
Soprados pelo vento inclemente,
Que soava como sussurro ou gemido,
Criava um tal pavor em minha mente.

Caminhava eu todos os dias
Por longo trecho de praia deserta.
Levava flores que ia recolhendo
Da encosta, de ervas recoberta.

Um caminho que me entristecia
Por já ter nele vivido as alegrias,
Quando ainda tinha em minhas mãos
Aquelas que agora já são frias.

Ao fim da praia avisto a colina,
Suas cruzes toscas e lápides brancas
Um cemitério que abriga meu passado,
Onde enterrei quase todas as lembranças.

A terra nua e pouco generosa
Do campo santo, triste e abandonado,
Nada medrava, nenhum verde havia.
Sobre um túmulo pranteio desolado.

Sob a cruz que marca minha desdita
Teço uma guirlanda com as flores,
Que arrumo sobre tua sepultura
Tentando esconder os meus temores.

Um pirilampo, ao cruzar a colina,
Recorda-me o trabalho a fazer.
Volto para o farol rapidamente,
Pois novamente virá o anoitecer.

Este farol, trabalho e guarida
Já me deu, e também felicidade,
Mas hoje é somente como grilhão
Que me acorrenta por toda a eternidade.

Sua cilíndrica e tosca torre branca
Contra o sinistro céu tempestuoso
Ergue-se medonha e imponente
Tal qual um gigante monstruoso.

Subo ao farol para acender a chama
Que alertará do perigo costeiro
Dos naufrágios que a tantos vitimou
Neste mar violento e traiçoeiro.

Enquanto raios dilaceram as nuvens,
E a chuva agita o oceano tormentoso,
Gira o farol no alto do rochedo,
E a luz se atira sobre o mar betuminoso.

Vigio a noite com olhar perdido
Num horizonte de total negrume.
É tanta a solidão que me anestesia
A alma que segue do farol, o lume.

Vaga minha lembrança até uma tarde
Que meu peito aprisionou no passado,
Quando a mulher que amor me dedicara,
Deixou vazio para sempre o meu lado.

A solidão deste lar abandonado,
Que fora feliz nos primeiros anos,
Logo a deixou tristemente insana,
E sua demência foi meu desengano.

Vagava longamente pela praia
A conversar e rir com as areias.
Seus olhos tinham algo de saudade,
Fitava o mar qual degredada sereia.

Eu a deixava cada vez mais só,
Por não suportar vê-la deste jeito.
Se não podia tê-la do meu lado,
A guardaria para sempre em meu peito.

E foi assim que a vi se encaminhar
Àquele ato que eu poderia prever.
Ela, do farol a se precipitar,
Sobre o rochedo eu a vi morrer.

Seu corpo jazia ensangüentado,
Mas seu rosto um sorriso esboçava.
Carreguei-a pela última vez,
Mas ela já não me abraçava.

Do farol eu via o cemitério,
Sua tumba constantemente vigiava.
Em meus pesadelos mais fantásticos,
Daquela tumba ela retornava.

Mas não havia amor em seu olhar,
Só o desejo de uma fria vingança.
Um tal terror de chofre me assaltava,
Que se exilava a mais tênue esperança.

Quando enfim eu acordava destes sonhos,
Um suor frio do rosto escorria.
Depressa eu espiava da janela
A ter certeza que a tumba não se abria.

Todos os dias desta miserável vida
São procissões como que penitência,
Quando rogo a Deus que me perdoe,
E faça sempre eterna aquela ausência.

A noite, a chuva, os raios e trovões,
E as ondas suicidas deste mar bravio,
São minha insone rotina vigilante,
Neste farol que habita meu vazio.

Um barulho me tira do torpor,
Desta lúgubre noite de temporal.
A porta que abre violenta,
Arrancada por incrível vendaval.

Meus ouvidos, entretanto, me alertam
Para um som que a escuridão me traz.
Os passos que avançam na escada
Lembram os daquela que não vive mais.

Meus olhos se voltam temerosos
E os medos mais profundos se confirmam.
Meu coração quase salta pela boca,
Pois são os olhos da defunta que me fitam.

Tal qual meus sonhos alertavam,
Ela voltara da horrível morte.
Para cobra a minha existência
Como paga por sua triste sorte.

Agito-me ante aquela visão macabra.
Um grito me socorre da garganta.
Meu corpo todo treme de terror,
Que até a funesta noite se espanta.

Derrubo todo o óleo incandescente,
E a chama se espalha pelo chão,
Não há como fugir deste farol,
Que agora traz a mim a danação.

Por fim pereço neste lugar triste,
Neste farol que agora arde flamejante.
Dramaticamente ilumina a noite,
Enquanto consome-se o torreão gigante.

A bela manhã, que gloriosa surge,
Vem encontrar tão somente ruínas.
Cinzas e fumaça que ainda persiste,
Sobre a minha morte repentina.

Deixo o farol enfim, para sempre,
Caminhando pela praia até a sepultura.
Que aberta espera por minha chegada,
Com aquela que ora me olha com ternura.

Sozinha ela estava em meu mundo,
E eu, solitário, sem ela vivi,
Mas a morte nos uniu para sempre,
Estamos juntos desde que morri.

Hoje eu canto no soprar do vento
Minha história perto do farol,
Para que ouça quem puder ouvir,
Desde a aurora até o por do sol.

Salvador, inverno de 2003.

Marco Antonio Cardoso
© Todos os direitos reservados