Faz tempo que perdi o jeito de rezar.
Hoje senti vontade de rezar.
Vontade de falar com alguém.
De falar com alguém que não reze maquinal-mente.
Que não reze porque sim, apenas,
porque rezar é hábito que vem de pequenino.
Hoje senti vontade de meditar,
sentar-me no interior de mim
e falar com alguém que me ouça.
Alguém que me olhe sem olhar os meus pecados
(eu pecador que me confesso),
sem olhar os meus defeitos,
as minhas fraquezas.
Senti vontade de orar
por aqueles que rezam por  rezar,
por aqueles que oram
sem meditar nas palavras que proferem.
Vontade de rezar
por aqueles que rezam  e descansam no sorriso,
porque nada muda e tudo fica na mesma.
Senti vontade de falar com alguém
que reprima a sua vontade de me atirar a primeira pedra.
Esperei sentado. Esperei meditando. Não apareceu ninguém.
Então saí de mim, fui à cidade
e percorri as esquinas da indiferença.
Estava frio na cidade. Pessoas cruzavam-se
de olhos postos no pensamento e passos atrasados no futuro.
Na primeira esquina vi um amontoado de cartões,
um amontoado de farrapos, e reparando melhor,
alguém encolhido tentava esconder-se do frio…
talvez da fome.
Esfriei a minha vontade de rezar… e prossegui.
Na segunda esquina vi uma fila de gente de prato na mão.
Eram pessoas como eu, mas sem sorriso no olhar.
De uma carrinha vi chegar gente. Gente de mãos ocupadas,
encher de sorriso o prato vazio de pessoas como eu
e como eles. Senti de novo vontade de rezar.
Vontade de orar por aqueles que fazem,
fazendo, para que tudo mude e chegue o sorriso
ao prato vazio de pessoas como eu e como eles.
Senti vontade de rezar. Não rezei. Dei um abraço.
Um abraço às gentes de mãos ocupadas, que fazem, fazendo,
e sentei-me outra vez no interior de mim.
Então pensei: se continuasse sentado precisando de alguém,
estas, eram as pessoas que me vinham ouvir,
porque eu precisava delas. Continuei.
Cheguei à terceira esquina e parei estupefacto: dois arrumadores pegavam-se na disputa de um carro. Observei. Dou comigo a pensar: estes querem o futuro já, e lutam pela moeda, de olhos postos no presente. Talvez sejam as únicas pessoas reais na azáfama da cidade. O medo é a forma egoísta do ser humano se proteger. Exercendo-o, ficamos prisioneiros desse medo.
Prossegui e cheguei à quarta esquina: Lá estava eu! Sentado! Sentado no interior de mim, meditando, com vontade de rezar. Uma loucura, pensei: rezar para que mude alguma coisa!
Mas continuava sentado à espera de alguém
que não me atirasse a primeira pedra
e não se importasse com a minha loucura.
Alguém que achasse, que mesmo assim valia a pena rezar.
A azáfama na cidade continuava.
Talvez alguém me note e entre no interior de mim., pensei.
Talvez seja o meu dia de rezar.
Já não me lembro como é… mas vale a pena tentar!
 
 

 

santos silva
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