Ainda era noite, mais em algum lugar do espaço,
tênue claridade se insinuava, despertando miles de seres
a começar o novo dia.
 
No meio do alvoroço vital da sinfônica melodia
destacou-se um canto, grito sutil, clamor insano, puro e pleno.
...era o pássaro.
 
Não foi somente uma, mas muitas vezes o apelo repetido,
e eu sem saber como nem por que, me vi imitando e repetindo
aquele canto.
 
Contraponto misterioso entre homem e pássaro,
parecia um intercâmbio de filosofias místicas, onde tudo era válido,
até o diálogo.
 
Nesse instante desejei ter meu próprio unicórnio azul
feito ave, como na poesia transcendental dos homens que sonham
de olhos bem abertos.
 
Ato II – A aproximação.
 
Fiz sinal de aproximação, olhando fixamente para ele,
e sem deter o canto místico, o pássaro escuro, de sutil colar pêneo,
e céfalo penacho iridescente,
veio sorrateiro, pulo-a-pulo, sem mistérios,
instalar-se qual eterna fênix renascida, à minha frente, olhando-me...
cantando-me...
 
Sem deixar de olhar ao fundo de seus olhos,
Insondáveis e etéreas perguntas saiam do meu canto
procurando saber dele a própria transcendência,
do divino milagre de eu sentir-me pássaro,
e tal vez ele sentir-se um pouco humano, ou tal vez, quem sabe,
nos dois... só sermos!
 
Ato III – A metamorfose.
 
O pássaro balançou suave e majestosamente sua cabeça,
e em ritmo crescente e ordenado,
qual redemoinho vivo, entre argênteas nuvens por trás iluminadas,
girou, em mágica voragem onde o tempo e o espaço se contraem
e o firmamento se transforma em eterno agora,
até, exausto e abatido pelo esforço,
permanecer em lânguido repouso de homem,
adormecido...
!!  Mas ... que digo?  -  De homem?,
o pássaro se fora, e em lugar dele, jovem mancebo repousava.
Minha mente procurava entender. Esfregava meus olhos,
apertava minhas carnes procurando a insensibilidade física do sono,
desejava acordar e re-descobrir o plácido conforto de meu quarto,
após noite mal dormida -de céleres e indescritíveis sonhos-,
incompletamente sonhados. Mas meus olhos continuaram abertos,
e minha carne doía.
 
Ato IV – O diálogo.
 
Olhou detidamente o estupor que marcava minha face, e disse:
“Não te assustes, queda-te em paz, também homem sou;
embora a dádiva da transformação a Deus pertença, mesmo agora
que homem vês, sou sempre pássaro para a revelação terrena.
Esta forma hominal existe em plano diferente, universo idêntico
raramente revelado, que faz parte do arquétipo divino de velar
e elevar o espírito desta humanidade com o misterioso canto místico
de significado pleno, acessível a todos os homens, mas...
por tão poucos compreendido”.
 
Ainda sem palavras, reação tardia própria de humanidade mal resolvida,
procurei ordenar os pensamentos que buliam no meu cérebro.
“Tenta com o coração” – me disse. “A manifestação que vistes
não se entende... se sente, não se pensa... se incorpora”.
Perguntei-lhe quem era, como, onde, por que, quando,
e todas as perguntas saíram da minha boca de uma só vez,
parecendo vãs ao meu próprio ouvido, arrastadas como em câmara lenta,
sem motivos nem fundamentos, como querendo entender
com humano entendimento, coisas de Deus, coisas da vida...
 
Quando me acalmei e comecei a compreender a situação,
o homem-pássaro falou: “Foi permitido, pelo esforço humano
de imitar um pássaro em seu canto, de tentar comunicar-se em diálogo
de expressão diversa, mas com a certeza do ser-em-si-mesmo,
que se rompessem as barreiras da diversidade biológica
e fosse possível a comunicação intercalasses, como antigamente,
como quando o Universo em expansão possibilitava a todos os seres
viverem em harmonia e paz”.
 
Sois um anjo? – perguntei. “Não” – disse. “Essa é outra classe”
São todos os pássaros?  -  “Todos e cada um deles” – respondeu.
E os outros seres e animais? – “Não me é permitido responder a tudo” – disse.
Podemos repetir este encontro? – “Só de Deus depende, como tudo,
mas tem certeza que, mesmo como pássaro, o interior do ser
se comunica. Basta achar o caminho e abrir o coração ao diálogo”.
Antes de eu poder balbuciar qualquer coisa, célere, disse:
“Agora está na hora da partida. O tempo concedido está finalizando”
 
 
 
Ato V – A partida.
 
Aparentemente reposto da anterior viagem,
ficou o jovem em pe e em posição de voar.
Olhou longamente meus olhos,
como suplicando querer ficar, neste humano mundo,
cansado talvez de representar o papel de pássaro,
voando entre as árvores, pulando de galho em galho,
cantando trinas melodias de tons divinos em áureos pentagramas,
bemolizando melancólicas harmonias naturais.
 
Suspirou de leve, ainda me olhando, e resignado a seu destino
rodopiou novamente, em sentido contrário,
entre as mesmas argênteas iluminadas nuvens,
na mágica e mística voragem
onde o tempo e o espaço agora se dilatam,
e o Universo inteiro se converte em eterno sempre,
onde o canto da natureza se confunde com música divina,
e se converte em mensagem aos homens.
 
Olhei então, ao redor, esperando ver o pássaro voando,
agucei meus ouvidos para escutar a trina melodia de seu canto,
e como o silêncio era tudo, e o tempo não passava,
mirei de relance, temendo encontrar o que ali estava:
forma rara, mesclada, de jovem não-humano, de ave não-pássaro,
figura dantesca sem claras palavras, sem místico canto,
de triste olhar parado.
 
“Estou tão cansado e sem forças...” -me disse quase sussurrando-,
“...não consigo voltar, preciso da ajuda de outro pássaro,
tal vez minha mãe que lá no Castelo do Alto mora e canta”.
Corri na direção sinalada com o frenético impulso do medo
que a morte cercana provoca nas almas. Gritei e cantei
imitando em desespero o canto do pássaro, a mãe escutava?
chorei lágrimas amargas, com a impotência do nada.
 
“Que te aqueixa, relaxa...”, -ouvi o pássaro dizer-me
e nem pensei no momento que pássaro não fala.
“Eu posso falar, mesmo não estando em forma humana”
Teu filho agora te reclama, ajuda precisa para voltar novamente
ao destino divino de elevar nossas almas,
sozinho não pode, forças lhe faltam
e agora não é homem nem pássaro.
“Vamos então” –disse a mãe.
 
Lá chegando, a informe figura no chão continuava,
mais penas que antes cobriam seu corpo de forma bizarra
com lívido rosto de humana aparência,
exausto, rendido, resignado.
“Não te preocupes” –disse a mãe,- “E assim que acontece.
O tempo resolve o dilema, as coisas divinas sempre se ajeitam,
e cada ser, homem o pássaro,
cumprirá definitivamente seu destino”.
...Cansado que estava, dormi.
 
 
Ato VI – O fim.
 
O trino melodioso de um pássaro me fez abrir os olhos,
lentamente reconheci o lugar, os galhos balançando,
o sol insinuando-se entre a folhagem, o mar bramando
insólitas e aquáticas frases entre as pedras ribeirinhas,
e no alto da árvore, cantando estava,
o pássaro.
 
Lembrei de tudo em um instante e gritei: Que bom te ver assim!.
E ele continuou cantando, saltando para mais longe,
voltando um pouco, voando em círculos, olhando...
ensaiei a imitação do canto, como antes o fizera,
e ele continuava cantando, voando, sendo pássaro.
 
Sonhei então, -pensei-, não foi real,
deitei e dormi o sono dos anjos.
Quanto tempo passou?
Onde se foi meu unicórnio azul?
E eu próprio, aonde irei?
Quem então velará pelo nosso espírito e elevará nossa alma?
Enquanto isso, continuava imitando o pássaro.
 
Confuso e disposto a voltar para a casa,
entre pensamentos desordenados
e eternas dúvidas cravadas no recôndito de minha alma,
não percebi que o pássaro, entre as ramas,
parecia piscar, cantando mais profundamente.
 
Levantei-me do chão e endireitei para a casa
acompanhado do canto do pássaro, que pulava e pulava,
embaixo da rocha da estrada o São Francisco de barro
rodeado de pássaros brancos,  enigmático, sorria,
e o duende da fonte, cúmplice, me olhava...

 

Héctor Enrique Giana
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