DESCOBRE-SE NA LENTIDÃO DO CARACOL UMA RARA MELODIA
A Machaco
Das colmeias já padecemos exaustivamente o zumbido e o mel. Estória reverente que tem azulado o sibilar do sol, despaginada mediante enxames de versos que, pelos compêndios, nos chegaram ao bocejo. Escudela d’esmolas, enfim, a coroar queixumes e superstições.
Enchi um livro de adágios (cada um para uma ocasião propícia), que é relíquia de volúpias experimentadas e vitimadoras: padecente rego de água glorificando os campos infinitos com suas asceses e com seus jorros.
Pois bem turbilhonando, os parágrafos se revoltam sob a suave brisa da canícula; e, entre, tantos insectos alados ou que rastejam, cantar a natureza sonoriza movimentos desconexos de origem irreverente.
Mas nesse livro leio, á luz, colorida estranhamente, do crepúsculo, quando as estrelas se confundem com os planetas na imensidade e os grilos fazem ouvir as dissonâncias de um ténue acontecimento. Soletro o tempo e o mau tempo, as nuvens e o céu limpo, a terra a estalar de secura e os caudais dos rios a transbordarem, as espigas balouçando-se entre o vermelho das papoulas, os cachos de uvas/ notícias do vinho e. O granizo, a neve, as rugas. As letras avolumam-se como o revolutear do alcião de aguda voz profetizando que a tempestade vai cessar.
Entretanto, de insectos se edifica a vida, invertebrada e rápida.
Retomo, então, o capítulo central, enfoque das directerizes, aquele que mais tem dado que pensar a filósofos, a pensadores, a cronometristas, e que admite deslocações para qualquer dos pontos cardeais, permanecendo (intocável e simultaneamente) no lugar da chegada e da partida: sobre o caracol ou, melhor, sobre a melodia lenta da sua casa e dos seus corninhos, espécie de fuga de alternâncias deslizantes que resplandeceu nas primeiras idades do mundo e que por nós responderá até o final dos séculos.
Deste modo (aprendemos) se edifica a prodigiosa maneira de vencer a morte: cada um suportando a concha frágil da peregrinação destinada e auscultando com tentáculos sinalizadores a temperatura da atmosfera.
António Salvado
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