NATUREZA MORTA ( CONTO )

Ao avistar aquela paisagem, adentrando o terreno, onde enorme porteira sinalizava os limites da propriedade, sobressaía a construção alta, com sua imponência, apesar do aparente abandono. Seguidos por um rapaz negro que demonstrava conhecer os meandros, não só da fazenda, mas das biografias de seus antigos proprietários e moradores. Contando, aos poucos, de acordo com que a curiosidade fosse solicitando. Vivia ali, plantando e colhendo em pequeno espaço, à troca de cuidar do casarão e dos arredores, cercados de matos.

Assim, pasmos, os visitantes verificaram a existência de um poste com argolas, sobre uma pequena elevação de pedras, existente no adro fronteiriço à entrada, como os utilizados para o suplício humano de negros escravizados. Então, repetindo o que sabia de seus pais e avós, o rapazote esmiuçava o enredo que, de tão repetido, parecia vivê-lo, ao contá-lo em detalhes aos atentos ouvintes. Era a herança que recebeu de seus tiranizados antepassados, narrativas de seus sofrimentos pela dominação branca. Arrepios de compaixão ao imaginarem as dores físicas impingidas aos escravos.

Adentrando o edifício imponente, sem perder a majestade, embora envelhecido nos anos, o ranger da madeira do assoalho, a escrivaninha grande no antigo escritório, com alguns objetos sobre ela. Os janelões rangendo ao serem abertos, como se acordassem após longo sono. O Sol penetrando, denunciando paredes enodoadas pelo tempo e descaso de uma casa abandonada. Imagens em estatuetas de alguns santos católicos, em nichos, revelando religiosidade, uma espingarda enferrujada, chapéus de palha apropriados para se defender de dias quentes. Alguns facões grandes, de abrir picadas em matas, encostados ao lado de uma cristaleira. Nas gavetas, abertas, quinquilharias, algumas moedas do império e notas de papel desvalorizadas

Andar pelos corredores da propriedade deserta era como viajar em sua história, reacender o seu passado, penetrar na intimidade de seus moradores falecidos. Quartos de portas grandes e janelas de madeira com tramelas, camas que mantinham algum arranjo, véus que cobriam, protegendo dos mosquitos, criados-mudos sisudos, urinóis de ferro esmaltados em porcelanas, sob as camas. Vidas paradas no espaço remoto de outros costumes, passeio que lembrava visita a um museu. Moradia de fazenda, rodeada por varanda, alta em referência ao solo, na qual destacava-se um pequeno sino, a chamar a atenção dos visitantes. Tratava-se, explicava o cicerone, de um sinal para chamar os filhos dos aldeões para as aulas, concessão estranha para a época, comentavam os informados. Benesse concedida à filha do patriarca, intercedendo junto ao pai pela devoção às crianças negras.

Só os passos, provocando ruídos, se ouvia naquela incursão de estranhos em visita. Ausências de coisas e pessoas se denunciava, como se recolhida em outra era, gruta inescrutável em tempo moderno, canto conservado em suas relíquias e saudades. Sinais de outras vidas, outrora habitantes, em seus afazeres diários. Divisões de alvenaria registrando vestígios, presenças pressentidas em imagens imaginárias, a andarem pelos corredores, na azáfama de suas rotinas.

A casa de banhos, com suas bacias sanitárias, onde os dejetos, na ausência de canalizações do esgoto, caíam direto na senzala, habitação de escravos e empregados livres, posto que o escoamento dos detritos tinha aquele destino, moradia situada abaixo da casa grande, talvez justificando a altura da edificação.

Sem dúvida, um túnel do tempo, favorecendo devaneios e cenários para remontar a história, num passeio pelo pretérito. Como testemunhas daqueles recuados anos atestavam as colunas que sustentavam a construção, ainda sólida, embora desabitada, revelando sobriedade e resistência às intempéries na conservação.

Vasculhada em sua intimidade, parecia ganhar vida, possivelmente movida pela imaginação dos presentes, tentando remontar enredos e adentrar naquele universo distante do calendário atual. Gritos mudos, lamentos de vidas exploradas até o limite de suas forças, tangidos como gados da longínqua pátria africana.

Nos ares o barulho impiedoso dos chicotes vergastando carnes em horrores, de dores físicas e morais. Aquelas surdas lamentações pareciam voltar com o vento brando, choros e lágrimas, imprecações e fúrias contidas.

Percorrendo o terreno limítrofe ao quintal, chamava a atenção um esquecido cemitério, assinalados de cruzes de ferro, sepulturas da família senhorial, deserta área invadida por ervas daninhas.

A propriedade em sua imponência e requinte de outrora, dos brasões de família e de orgulho de casta, restava aos seus donos apenas cruzes encarquilhadas em ferrugens, atestando seus perecíveis restos mortais, na altivez e tristeza, na lembrança inglória e desonrosa de um pelourinho tiranizando seus semelhantes, iguais em espíritos, distintos apenas na cor da pele... Curiosamente, apenas em uma cova havia plantas não daninhas, mas margaridas brancas a cobri-la, aonde repousava a filha, preceptora, que ensinava e intercedia pelos pequenos descendentes dos escravos.

Nas espirais dos tempos, esmaecidas lembranças narradas aos visitantes pelo bisneto de negros escravizados, protagonistas da história escrita com sangue e lágrimas, trazendo à lume, vidas ausentes, naquele cenário de natureza morta...

CONTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONCURSOS DE CONTOS DA EDITORA
" DELLICATTA IV".