Tolices
(Da obra "Cantigas do milharal" de Daniel Lellis Siqueira 2005)


     Animalescamente, dum jeito profundo de sentir as  coisas, peguei o meu maço de cigarros sobre a mesa, as minhas coisas de trabalho, a chave do carro e algumas moedas de porvir o mundo, nem sei quantas tinham, só sei que era o suficiente para me encher o bolso direito. Fui para a garagem, abri a porta do carro e joguei tudo lá dentro. Abri o portão como já o fizera várias vezes, aí me dei conta de que tinha esquecido o meu relógio. Que tolo eu sou, perderei um encontro importantíssimo só por ter esquecido o meu bracelete das horas. Corri para dentro de casa, apanhei o relógio, entrei no carro com uma efusiva pressa e saí como um maluco deixando o portão escancarado como os meus olhos no espelho retrovisor. Que tolo eu sou, se eu deixar o portão aberto alguém entrará em minha casa e roubará todas as minhas coisas (como se eu tivesse muitas)
        Dei meia volta e ao chegar em casa o portão já estava fechado, terá sido a empregada? Sem nenhuma coerência saí disparado para o encontro, mas, encontrar o quê? Não faço idéia, afinal eu estava com tanta pressa que nem mais sabia qual era o meu destino. Que tolo eu sou, a minha única posta de imagem era de uma praça grande lá perto da Consolação. Estava indo, com muita pressa, mas indo, seguindo entre ruas e becos evitando os semáforos que tanto me enlouquecem.

        Sentimentos eclodiram sobre a minha epiderme oleosa, pensamentos passaram entre minhas orelhas...Será que aonde eu for, alguém irá me esperar? Perderei o meu dia a procurar alguém, que, eu nem mesmo sei quem é? Atracando sonhos sobre as pupilas de um alguém almiscarado... Que tolice a minha, nem mais sei aonde estava, quando pensava em alguém, nem esse alguém sabe de mim. Só sei que estou dentro do carro, com os vidros abertos e as idéias longes...Faróis me interceptam, como se eles seguissem um regime militar uma espécie de ditadura, será isso mesmo?

Ah, sim, é o semáforo...


 a hierarquia das ruas.


Pessoas começam a caminhar defronte o meu para-choque, uma bonita mulher de saia curta e pernas torneadas, um grupo de crianças saindo da escola com suas risadas metálicas e sentimentos longínquos. Que tolo eu sou, aqui olhando pernas e bocas e me esquecendo do meu objetivo principal; o sinal já vai abrir e eu sairei arrancado daqui.
          Passa um casal de senis pedestres pela frente, tão devagar e calmo... Mas como é que pode, eles por terem tão pouco tempo de vida, estarem com tanta calma para irem para o seu destino. Mas que tolice a minha, agora estou eu divagando sobre a vida dos outros. Os dedos entrelaçados, os sonhos enevoados e uma sacolinha de compras na mão direita do velho pedestre... O pouco e frio amor que passa entre palmas das duas mão unidas, o coração já quase cessando o seu trabalho. E eu querendo ir embora... Até quando o meu coração baterá? Até quando a minha pressa vai torturar os meus sentidos? Até quando eu viverei pela vida, e não a vida?

Que tolice a minha, o semáforo já iluminou o seu olho verde e eu aqui pensando sobre os outros. Buzinas me pressionam a correr mais uma vez, será que eles ainda não enxergaram o que eu acabei de ver?


Que tolice a minha... Tanto os velhos quanto a minha vida passaram diante dos meus olhos, e eu nem reparei.


Daniel Lellis Siqueira

Um homem está correndo desesperadamente para um encontro importantíssimo, e ao parar no farol, tem uma grande revelação na vida.
Ensaio existencialista, monólogo de pontuação e poesia introspectiva.

Casa do Norte

Daniel Lellis Siqueira
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