Coloquei a bagagem, transportada em um carrinho de mão, o material que trazia do bairro rumo ao centro da cidade, e subi no coletivo. Como fazia o trajeto no contra fluxo, acomodei-me em uma cadeira individual para melhor me ajeitar; na viagem, observando o movimento pela janela, distraía-me. Desceria no ponto final, o que me deixava mais à vontade; e, como o ônibus não estava cheio, desatento, e involuntariamente, passei a ouvir a conversa de um passageiro com o condutor. Os dois relativamente jovens, falando de amenidades, e reconhecendo-se como de mesma denominação religiosa, evangélicos. O decorrer do diálogo, que ia de pessoas conhecidas em comum, até a prática de jogos de futebol amador que participavam. Como ambos professavam a mesma religião, em que o falante rapaz narrava da sua namorada, exímia instrumentista nos cultos da igreja, manejando vários instrumentos da banda, enquanto ele tentara aprender bateria, sem sucesso. O outro, na direção, respondeu, resumidamente, que tocava tumba. A pergunta do motorista sobre de qual região do país o amigo era, deu início à narrativa que seguiu-se, a mim inusitada. ...
Vim da Bahia. Cheguei aqui aos 17 anos, hoje estou com 28, depois de ver meu pai assassinado...ele foi morto com três facadas. Neste ponto do colóquio, a sua fala tornou-se mais pausada, séria, como se tivesse necessidade de falar sobre tão delicado assunto... Cheguei aqui ( São Paulo), trabalhei, comprei um carro, uma arma e paguei a dois ajudantes para me acompanharem até a minha cidade natal, queria vingá-lo. A vingança era o estímulo para minhas economias, não descansaria enquanto me lembrasse da forma vil e humilhante com que fora abatido, pelas costas. Aquela quebra no ritmo da conversa chamou-me a atenção mais detidamente. O inusitado de se confidenciar a outro recém conhecido, de um fato incomum, a vindita que o consumira. Pois então, retornou o assunto o loquaz narrador, embora frequentador dos cultos, o que lhe dava relativa paz de espírito, a memória do pai agonizante em seus braços cobrava-lhe atitudes enérgicas, não lhe permitindo sossegar sobre o drama a consumi-lo; mataria o desafeto, assassino frio e implacável, “quem com ferro ferre, com ferro será ferido”, sentenciava no dizer bíblico. Debalde as mensagens que pareciam vir direcionadas a ele, através das pregações dos pastores, enaltecendo sentimentos de paz e de perdão incondicional aos inimigos. E a lembrança do quinto mandamento, “não matarás!”, a incomodá-lo, planejou e intentou o crime. Tal era seu desiderato como uma ideia fixa. Curioso como aquele cidadão risonho tinha tanta necessidade de se expor sobre tão privada questão, afinal fora a causa de uma morte, não importasse as suas razões. E discorria com detalhes, como se sentisse necessidade de esmiuçar o acontecimento; deduzi que via naquilo uma compensação para o torpe assassinato paternal, enaltecia a narrativa com ligeira ponta de orgulho pela infausta façanha de tê-lo vingado. Jamais poderia supor conversa tão inesperada como aquela. A mente humana, insondável em seus meandros, nos apresenta surpresas. Como aquele simpático varão, cheio de juventude, alegre e aparentemente pacífico, abrigara tal instinto revanchista, capaz de fazer justiça a seu próprio modo?
Em uma noite chegou em sua pequena cidade, distante da capital, Salvador. Feitos os cumprimentos saudosos à mãe, perguntou-lhe sobre o famigerado, sendo informado que transitava placidamente pelas ruas, sendo respeitado por seu passado delituoso naquela terra esquecida da Justiça. Com um rol de acontecimentos criminosos na biografia, era temido pelos pacatos cidadãos, a parecer temor no disfarce de respeito.
Achegou-se à vítima que se encontrava em um bar, o interpelou, atraindo a sua atenção. Não agiria de forma covarde, como fizera com seu pai, pelas costas. Morreria ciente do que se tratava, fitando-o, cara a cara. Apesar de acompanhado, determinou que caberia a ele a consumação do delito, era uma questão pessoal, intransferível. Embora tétrico, desejava vê-lo estrebuchando, feito um animal, tal qual relembrava seu drama paterno. Pego em surpresa, desprevenido, parecia o fim do malfeitor, se a arma acionada, em várias tentativas, não tivesse refugado nos disparos, inexplicavelmente. Instantes preciosos para, refeito do susto, a vítima evadir-se rapidamente do local. Ao presenciarem a frustrada tentativa, os comparsas saíram no encalço, alcançando-o e o fulminando com onze tiros, à queima roupa, pondo fim à carreira criminosa daquele homem.
A cidade, desassistida pela Justiça, sentiu-se aliviada pelo extermínio, e, tal qual procedia diante às execuções feitas pelo morto, calaram-se, como se nada tivesse acontecido...
No caminho de volta, abismado, experimentou disparar para o alto, e o revólver respondeu prontamente, vindo em seu íntimo a lembrança da pregação nos cultos, além dos frequentes apelos da namorada, o do quinto mandamento de Deus, “Não matarás !”
Encerrando a conversa, algo aliviado, pediu o número do whatsApp do motorista, para lhe enviar os cânticos de louvor da Igreja de ambos...
Chegávamos ao destino, o ponto final, no centro da cidade.
Meu 94º texto publicado em livro de antologia de contos, a maioria pela editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.
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