Comecei como algo minúsculo: um carrapato.
Embora fosse uma existência ínfima e parasita,
Meu universo limitava-se às costas e à pelagem finita
Dos animais nos quais me instalava, e isso é fato.
Folgava em drenar o sangue deles para o meu sustento.
Percorria seus corpos exercendo a função que me deu a natureza
E, ignóbil quanto à importância ou à beleza
De minhas ações, fazê-las me trazia imenso alento.
Então, quando dei por mim, eu era um burro.
(Nem sei dizer como ou porquê me transformara!).
Caminhava a carregar carroças, sobre a estrada clara
E meu mestre golpeava meu lombo como um murro...
Apesar disto, não era uma vida tão ruim.
Conheci vários lugares e paisagens com sol e lua,
E percorri desde a terra fofa, até o piso da rua,
Além de descansar pastando o verdejante capim.
Certo dia, acordei homem... Que maçada!
Despertei em um cômodo leito, mas tão irresponsável.
Fazia coisas "certas" que causavam dano irreparável
A tudo e todos para viver o meu conto de fada!
Ofendi e fui ofendido; fui golpeado e também golpeei;
Pensei mais em mim do que nos outros e não havia coletivo,
Porque a grandeza do homem se faz com o engano vivo,
De pensar que ele é supremo... E ouçam agora o que direi:
Neste mundo em que todos, em nossas funções, causamos dano,
Nada pôde ser tão grave quanto a trágica metamorfose
Que me transformou de carrapato a burro e em letal dose,
Me fez beber do veneno que, por vezes, é o ser humano!
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