Se os tons de preto
pintados no teu vestido
fossem puros tal esse soneto
não haveria medo ou perigo
tão pouco suas franjas
sobre mim se desfariam
em dias e noites tantas
que homens felizes diriam
é um portento e tanto
sobre si desfalecido
e nesse leito onde há pranto
também consolo há
para moços e envelhecidos
que não tem onde chorar
passa pelas esquinas
e por elas se anima
fazendo como outras meninas
que comem do que se prima
mas não por diversão
e sim por fome de verdade
que nem cabe nessa canção
um ato de pura vaidade
se teus cabelos fossem cortados
se tua cor esmorecesse
se esses olhos amendoados
não vissem o sol que nascesse
e tuas unhas descolores
quebradas também fossem
em partes inferiores
como o verde que sobe
mas é tolhido pelo desejo
e num vento forte
cai sobre o próprio ensejo
naquele velho mesmo corte.
Se teu andar fosse menos
Altivo e curvilíneo
Não me tiraria o senso
Tampouco o raciocínio
Se tua voz doce
Peçonhenta e aveludada
Nos meus ouvidos não fosse
Todos os dias cantada
Eu me arderia feito pimenta
Pois esse veneno que há em ti
Me ilude e sempre diz
Tudo que eu quero ouvir
Se de morte tu fosses tomada
E de sorte minha alma, amada,
Subisse também ao inferno
Não diria eu é mais nada
Sentiria falta confesso
Daquela que me afagava
Sem lembrar de amanhã
E para o tempo parar
Bastava agente querer
O que já , só lhe faz correr
Para o centro das discussões
Para os corredores de fuzil
Para o disfarce da solidão
Para o seu velho canil
Onde se escondia na juventude
Com medo de ser criança
E pra lá volta amiúde
Pra viver cada lembrança
Sua nostalgia me cansa
E por isso se mantenha
Sem passar por mim nem lança
Seus olhares de descrença.
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