Cotidiano brasileiro

Morre, neste instante,
Uma outra pessoa.
Tantas já morreram!
Morrerão, quantas outras?

Não de morte morrida;
Não obstante, de morte
Planejada, encomendada, bandida.

Dizem que é queima de arquivo.
Como se fosse a vida
Um obsoleto programa

Em gavetas antigas
Ou propriedade particular de Cia.,
É, a vida, capital de alto risco.

Está tão difícil a vida!
Desorientada, desamada,
Desalmada, esquecida!

São tantos os traficantes e assassinos,
Estes viajantes tolhedores de destinos
Ancorados na orla da liberdade tolhida.

É sem porto esse mar
De drogas, corrupção e sangue.
Prolifera a guerra das gangues.

Marginais, de cara lavada,
Não apenas pelos fundos,
Mas por todas as entradas
Invadem as nossas casas.

Afinal, de que partido,
De que governo, organização,
De que homens, esses animais são
Tão fiéis comparsas?

Vale mais o poder,
Na mente pobre dos homens podres.
As pessoas abandonadas no cais,
Sucumbidas, à vontade escravocrata dos capitais.

Mãos inescrupulosas dos humanos
Na avenida central,
Na favela naval,
Na penitenciária estadual,
Executam as ordens sórdidas.

Dói a perda de um ente;
Se criança, jovem, velho,
Não vem ao caso.

O que interessa lamentavelmente
É a constatação de que outra pessoa
Morre, vítima inóxia, à toa.

Outra senhora está viúva.
Mais um homem, ainda moço,
Morre, sem deixar filhos nem mulher.
Adiante, sete ou mais crianças órfãs.

Quem será o próximo amanhã?
Eu, você ou todos nós?

Tráfico de drogas pesadas,
Tiroteio nas alheias janelas.
Ilustríssimos senhores,
De paletós e gravatas, na passarela
Do crime organizado.

A polícia sempre atrasada.
Não se sabe se porque os bandidos
Demoram vestir as fardas.

A justiça aliada,
De olhos estrábicos
Ao submundo: cobertura,
Suborno ou subalterna candura?

A corrente do sistema
Político-policial se arrebenta;
A sociedade já não mais agüenta
E a insegurança absoluta, reina.

O governo estadual diz:
Não é comigo.
O prefeito discursa:
Não, isso não é comigo.

Neste ínterim, continua acirrado
O debate da carapuça.
Remete-se o problema ao Senado
Para votar de quem é a culpa.

Os congressistas se esforçam,
Trabalham "bravamente" no recesso,
Analisam, debatem , votam,
Discursos fisiologistas no Congresso.

Nisso, venceu-se o mandato,
O processo ainda paralisado,
Porque é véspera de campanha política.
Do modo que estava, por enquanto, tudo fica.

À margem dos fatos,
Meu pai, vosso filho,
Nosso mais dileto amigo
E todos nós corremos risco:
De morte ou de vida?

O dom do viver em perigo,
Nas praças quase sem gente
O projétil sangra outro refém.

O Brasil descortinado:
O piso e o teto,
Inseguros e funestos
Desaba sobre um povo desamparado.

Lágrimas jamais apagarão o sangue,
Pois quando o coração se parte
São raras as possibilidades de emendas.

Por que somos todos assim covardes,
A mancha solidificará. Não obstante,
Pelas lembranças, o sangue latente
Inundar-nos-á a memória,a história e a arte.