Meu Irmão, Minha Vida

Meu Irmão, Minha Vida!


Ergui meu braço esquerdo em direção à campainha e levemente fui soerguendo meu punho, e em seguida estirando o dedo indicador, o que me causou nesse exato momento um estremecimento que teve início na ponta do dedo que apertava sofregamente o botão, e em segundos espalhava suas nódoas de raios eletrizantes por todo o corpo. Recolhi o dedo uma ou duas vezes, mas por manipulação constante da mente eu insistia em mantê-lo erguido e afundado no plástico amarelo sujo da campainha. A qual fazia um barulho grosseiro e sufocado percorrendo cada célula de meu corpo e me arrepiando a alma. Direcionei meus olhos até a maçaneta da porta que começara a mover-se ruidosamente, acuei-me dentro de mim mesmo nesse instante que bastou para atordoar-me todo o ser. Avancei meu corpo sedento de refúgio para as grades do portão e tentei reprimir uma lágrima que gritava em meus olhos, com a porta entreaberta pude notar na primeira tentativa de interpretação daquela cena, daquele corpo, cuja massa esgueirava-se pela parede forçosamente e lentamente ia permitindo a abertura plena da porta amadeirada, o corpo aos poucos ia criando a forma de uma lamentável expressão de dor, de horror saliente. Segurei com as duas mãos as grades finas de ferro do portão acinzentado e apertava-o, como para não romper em choro, como para não me disparar a correr. A figura daquele corpo representava o reflexo do irreversível, arregalei os olhos e compreendi por fim quem representava aquele tamanho desalento, era o pai, o pai que há pouco perdera um de seus filhos, um de meus irmãos, o irmão do meio, sendo eu o mais velho, éramos três ao todo, ainda com os olhos arregalados tentei encenar uma ternura que eu não sentia, porque eu não passava de mágoa, não era mais do que alguém tremendamente abalado, de uma fria nostalgia incontida dentro do coração, sorri, um riso torto, severo, no canto da boca, e sustentando aquela falsa ternura balbuciei qualquer coisa como: “Onde está Bentinho? Eu, eu preciso vê-lo, Bentinho onde está? Já com um ar rude abaixei a cabeça e tentei, lutei para ensaiar uma sobriedade, quando no fundo eu transbordava piedade, vazava cólera. Ele, muito atento as minhas palavras, ao que eu articulava, fitou-me sério por longos segundos e esboçou sem grande demora um “Venha Cá” com as mãos no ar, um gesto doce, era simpático o pai, amável, e ao mesmo tempo encarnava também uma expressão de demência misturada com bondade, o pai sempre teve os olhos bondosos e de um brilho que retratava bem sua sinceridade, enquanto eu naquele momento brigava secamente com o trinco enferrujado do portão, à fim de adentrar a casa, e enquanto guerreava naquele estressante jogo do portão acabei adentrando mais uma vez os meus pensamentos, espalhei-me no meu íntimo e engolia a idéia de estar voltando, depois de anos, nem lembrava quantos anos, oito, sete, não sei, sabia que na íntegra havia desaparecido daquela cidade e me enfiado num buraco qualquer no interior de são Paulo, lembrei das discussões que antecederam minha partida, o pai, mantinha o mesmo ar daquele dia, e a brandura de suas palavras me vinham à mente naquele instante, as suas observações certeiras, despejando em cima de mim seus quarenta anos de experiências, prevendo minhas dificuldades, alertando-me da má escolha que eu havia feito, mas eu naquela época não era nem metade do que sou hoje, era um egocêntrico, era um cretino que idolatrava um eu nocivo, mas o pai nunca me tratou como eu merecia, o pai sempre fora bom, bom demais pra erguer suas pesadas mãos em direção ao meu lombo estúpido, nesses últimos anos cheguei a pensar que, se ele tivesse me marcado com suas correções, eu talvez tivesse feito algo melhor de mim, da minha vida, talvez teria optado pela união calorosa da família, mas eu não enxergava que não eram os outros os errados e sim, eu mesmo, eu fui um perverso, um comedor, um malandro, não tinha respeito nem por mim mesmo, até que Jorge, um colega de roteiros sem futuro me propôs o que na época eu julguei ser a chance da minha vida, a oportunidade de ser dono no meu nariz, sem nunca mais ter de ouvir os sermões irritantes do pai, Jorge tinha uma tia no oeste de São Paulo, uma tia descasada e com uma filha moça, esse meu colega conhecia o mais grotesco que perambulava nas minhas veias, na minha mente, Lurdes era uma mulher que atingira seus objetivos financeiros, morava na rua central da cidade numa casa que mais tarde quando conheci fiquei deslumbrado, era tudo do mais luxuoso e o que mais me impressionou foi ter acesso através de Jorge às informações de que todas as mais belas casas do centro da cidade pertenciam a Lurdes, sua tia, Jorge me apareceu certo dia contando que Lurdes havia ficado viúva e que já havia contado a ele que não pretendia ficar mais tempo sozinha, desejava o mais rápido um jovem atraente para juntar-se à ela, tinha preferência a jovens, pouco despertava o seu interesse os mais velhos, mas se lhe aparecesse um rapaz, ela logo saltitava no chão e sorria largo e satisfeita, o interesse mais preciso de Jorge era com isso, unindo eu e Lurdes, obter por meio disso, um de seus bens, e se beneficiar com as recompensas dadas por ela, já que sua tia não era de dar crédito algum a parentes sem recursos. Foi daí que minha perigosa jornada teve início, Jorge como tentando liquidar minhas dúvidas em relação a esse plano, chegou a insinuar que caso Lurdes não me surpreendesse fisicamente eu poderia saciar-me com Angélica, a única filha de Lurdes que contava seus 12 aninhos. Jorge era um rapaz muito esperto, de má índole, ganhava de mim nas malandragens, mas morria de inveja de mim, porque eu podia ter um elevado grau de má conduta, mas podia também ter qualquer garotinha aos meus pés, ele sempre foi o posto de mim, enquanto minha beleza era reluzente, ele era apagado e cômico, tentou por duas vezes ele mesmo conquistar sua tia sem resultados, ele não a atraiara em nada, foi então que tentou a sorte comigo, sabendo que eu era o terror das meninadas. O pai me conhecia o suficiente pra me largar a mingua de sua atenção e amor paternal e ao invés disso, ele nunca desistiu de mim. Ao término do sacrifício agonizante de corromper a barreira daquele portão, inclinei a cabeça para a altura da cabeça do pai e pude notar que ele me fitava com uma leve estranheza, dei meus primeiros passos em direção a ele, eu estava com os movimentos muito chochos e como que me desviando do pai, perpassei o olhar pelo terreno da casa, inclinei pouco mais a cabeça e avistei o telhado, deixei a cabaça despencar do pescoço e escorri o olhar pelo chão grosso não varrido, quando de súbito fui arrebatado de emoção por uma recordação de dez anos atrás, quando eu, tão sem jeito e encabulado mal conseguia mexer-me ou falar o que quer que fosse, de repente, aquele mesmo lugar não demonstrava aquela aspereza da crua e fúnebre realidade, e era nas minhas memórias uma bonita e grande festa de aniversário, pude até sentir o peso dum copinho de refrigerante numa de minhas mãos e noutra a oleosidade de um saboroso salgado, despertei desse transe com um tropeço, percebi que estava movendo meus pés em arrojados círculos, e os olhos plantados ora num minúsculo orifício na parede, ora num vazo murcho de uma flor qualquer. Enfrentei a expressão já desmanchada do pai e acompanhei sua mão grossa e tenra fazer um contorno infantil e desajeitado pelo ar e pousar no meu ombro, como que querendo dizer sem poder pronunciar palavra alguma “Bem Vindo Meu Filho, Vamos Entre, Essa Sempre será a Tua Casa também”, meu pai estava abatido, estava embranquecido, desalinhado e, contudo espantado por me ver ali, por me ter ali, diante dele, ao seu alcance, o pai estava pálido. Fomos juntos caminhando pelo interior da casa, sem nada dizer um ao outro, a casa me pareceu tão cômoda, tão confortável, clara, limpa, porém, possuída por um vazio absoluto e devastador, fomos entrando e fui sendo acomodado na primeira poltrona avistada por ambos, contemplei por algum tempo os objetos dos quais me ressurgiam automaticamente recordações daquela vida de anos atrás que me assombrava, cada poro do meu corpo vibrava em descompasso, eu era um erro amedrontador naquele momento, e procurava não me fazer ciente disso, o pai afastara-se sem sequer deixar escapar uma mísera palavra, a única coisa audível daquela casa eram os soluços inconformados, eram os lamentos depressivos de cada gemido, aos poucos fui me dando conta de que uma presença apressava-se na minha direção, com passos surdos, calados, quase sem ruídos, ostentei a cabeça para o lado do qual eu notara uma certeira aproximação e me pus de pé, antes mesmo de dar tempo a uma respiração inalterada, antes mesmo de compreender a quem pertencia aquela abundante fonte de desequilíbrio e inércia aguda, naquele ser que postava-se diante de mim, e ao mastigar devagarzinho a rajada de saudades inexprimível que me fez num confronto árduo lançar-me na sua direção e numa voz rouca e gelada dizer simplesmente “Irmão” “Bentinho” “ Bentinho” a seguido de um abraço louco, faminto, desesperado, eu gemia apertando-o vorazmente e dizendo por repetidas vezes “Irmão”, que surgira segundos atrás feito um feto abortado a minha frente, era pouco menos que um cadáver, enquanto o sentia calorosamente ia me perdendo num passe de desatenção dentro de mim mesmo e inconscientemente coloquei-me a refletir, mantinha os olhos agarrados a imagem do espectro que há pouco eu identifiquei ser de meu irmão, mas eu nem pertencia a esse mundo naquela ocasião, embrulhei-me num pensamento que me espetara a cabeça, feito um cachorro desgraçado que descobre um osso antigo, mas dominado de um sabor inesperado, nas palhas da desesperança, e eu fui montando um quadro, um mural de interjeições e supostas justificações, analisava com coragem o corriqueiro de nossos anseios, o fato de desejarmos tanto determinada pessoa, transgredindo regras, perdendo a lucidez com planos, construindo cenas de futuras possíveis conquistas, almejando a concretização de uniões incoerentes, esquecendo de algo tão importante, tão importante ao ponto de passar despercebido, somos tão ingratos com o mundo, com o universo, com o sagrado e misericordioso Deus, esquecendo de agradecer-lhe o simples e precioso fato desse ser amado existir, assim, amá-lo por simplesmente sermos beneficiado com sua existência, de desejar-lhe o bem, independente de conosco estar ou não, e principalmente, a consciência de ser grato a Deus por somente saber que esse alguém pulsa, embora distante, com o coração veemente, pungente, pelo sadio reconhecimento de saber-lhe vivo, saber-lhe em terra firme, mesmo não sob tutela de nossos caprichos pessoais. Ainda abraçado à Bentinho, meu irmão de dezessete anos, o caçula, sem intenção fui recordando seus olhinhos esganiçados com minha partida em épocas mortas, enquanto o pai me adulava com tuas súplicas afobadas para que eu adquirisse maturidade e ficasse com a família, e ousava me atacar emocionalmente emitindo em palavras a tristeza da mãe, dos irmãos, Bento e Tom, que haveriam de sofrer em muito, mais que ele próprio, com minha decisão absurda de tomar um desconhecido rumo. Desejei ir sobressaltado ao encontro do pai naquele exato momento e admitir o quanto ele sempre teve razão, mas eu fui envolvido rapidamente outra vez na imagem de Bentinho na ultima vez em que eu o havia visto, enquanto sentia um nó no peito pelo garoto miúdo das minhas lembranças, sem encarar o pai uma só vez, deixei-o falando sozinho suas chorumelas e me dirigi ao quarto de Tom, que “assistia” a toda algazarra que eu e o pai fazíamos, era quieto meu irmão do meio, ele era um jovenzinho inteligente, era parecido comigo, contava seus treze anos, só não herdara meu gênio difícil e arenoso, e eu, anos depois, agradecia a Deus por isso, e rezava nas minhas orações para que Bentinho não seguisse o meu exemplo maldito, e fossem ambos feito o pai, aquele homem forte, guerreiro, companheiro e nem um pouco arredio como eu. Ao deixar aquela casa, foi com uma agressividade incontrolável que eu maldizia o pai, que enquanto a mãe rogava por minha lucidez eu dizia horrores do pai para ela, eu entupia aquela casa de verdades que só eu via, eu fui um monstro, um monstro. Tom era meu chão, cheguei a puxar-lhe a mão e não sei se carinhoso ou autoritário o suficiente pra não demonstrar afeto algum, não sei se pedi ou mesmo exigi que ele deixasse tudo e fosse comigo, e fosse embora comigo porque eu saberia como lidar com ele, na nova vida que eu iria seguir, Tom era cego, e fora sempre o meu preferido, dávamos as mãos e juntos íamos caminhar em torno dos quarteirões, o pai nunca concordou em deixa-lo ir para muito longe, nem comigo nem com ninguém. Enquanto eu tomava Tom em meus braços melancolicamente, eu notava enraivecido que ele não desejava partir comigo, ele se mantinha firme ao chão, e seus ultimas palavras para mim foram: “Henrique, não vá, não me deixe”.
O pai tinha um pequeno comércio há algumas quadras de nossa casa, Tom era seu ajudante mais eficaz, eram muito próximos os dois, Tom recepciona os fregueses com um lindo sorriso, ele era meu chão.
“Henrique”? balbuciou trepido Bentinho e me trazendo numa rudeza sem limites à realidade, “Bentinho” “Irmão”, receei que não pudesse me reconhecer, mas eu ouvira de seus lábios “Henrique”, e meu coração alucinado, num ritmo inconseqüente, comemorava essa alegria que me penetrava o corpo inteiro. Larguei-o e fixei-me no seu semblante, era o meu irmãozinho, era Bentinho. Eu não era mais, em nenhum sentido, aquele garoto de vinte e oito anos que passou por cima dos sentimentos da família toda. O pai aparecera como um fantasma ao lado de Bentinho, eu sempre odiei o pai, e temia que fosse ele que me detestasse agora. Ficamos de fronte, éramos um trio, Bentinho, o pai e eu. Todos nós consumidos pelo remorso, pela tristeza palpável que dançava ironicamente em nossos corpos. Por fim, o pai saiu daquele casulo silencioso e incomodo, tremeu os lábios antes de corta-los com o som de suas palavras “Eu sei porque você voltou meu filho, foi pra unir-se a nossa desgraça, foi para presentear-nos sarcasticamente com a sua dor, foi para acrescentar sua cólera aos nossos incisivos sofrimentos”, as palavras do pai me rasgaram na superfície interna do peito, e eu sangrava, e meu sangue ecoava em forma de lágrimas, e eram abundantes as gotas lacrimosas, o pai chorava essa angustia ao meu lado, o pai era mesmo um companheiro. E enquanto eu desabava frente ao pai e ao irmão eu fui perdendo os sentidos, eu me recordei de Angélica, filha de Lurdes, Jorge tornou-se proprietário de duas casas de sua tia, fora bem recompensado, andava num carro de grife, freqüentava os melhores locais do país, viajou inúmeras vezes para o exterior, era tratado como um rei. Lurdes me amou desde o primeiro instante, ela era uma mulher muito interessante, casamo-nos três anos depois, eu podia me considerar um homem feliz, sua filha era graciosa e demonstrava muito afeto por mim, aos poucos, depois de conhecê-las, fui me libertando do meu passado, do ódio que eu guardava pelo pai, o pai tinha um segredo, suspeitando, embora de certa forma ignorando a situação, que ele mantinha desde muitos anos um romance com Cecília, que morava na casa da frente, via-se o pai constantemente entrando e saindo daquela casa, eu sempre fora esperto, me escondia e vigiava os passos dele, vivia de soslaio, eu devia ter uns oito anos quando descobri aquela traição para com toda sua família, ninguém nunca soube de minhas suspeitas, nessa mesma época Tom acabara de nascer, e na casa da frente nascia também uma linda garotinha, Valquíria, filha de Cecília, meu primeiro amor. Valquíria quando mocinha, apoiava-se na sua janela e passeava com os olhinhos para mim, ela já tinha seus quatorze anos, e era só ela iluminar a rua com os seus passinhos elegantes que meu peito enchia-se de alvoroço, ela era linda e eu odiava o pai por sabê-la minha irmã, aquela maravilha de garota, o meu primeiro amor. A mãe de Valquíria jamais soubera explicar, ou manter até o fim uma verdade sobre o pai de sua filha, era um mistério, ela vivia sozinha e o bairro inteiro comentava essa curiosidade. E o meu ódio pelo pai crescia ao passo que eu amava aquela menina, e não sei se foi a pior coisa do mundo ou a melhor, ser correspondido por ela. Essa menina me inspirava coisas boas. Chegava da escola com um riso bem formado nos lábios e embora disfarçadamente, com toda a sutileza que só raras garotas que conheci possuíam, era notável que aqueles risos, que todo aquele contentamento era por me ver e quando já estávamos bem íntimos, apenas nos desejando silenciosamente, ela corria com os livros pra casa e em segundos fazia-se presente lá em minha casa, e me contava sobre suas aulas, sobre o seu descobrimento como mulher, mais que amantes um do outro, éramos amigos, inseparáveis. E o meu ódio sempre latente pelo pai, aquele homem que podia enganar a todos, menos a mim.
Vivi um romance inesquecível com a garota que morava na frente de minha casa, e mesmo sob a continua suspeita, eu, ao lado dela, pouco me importava em cometer “incesto”, porque eu a amava, e não haviam razões suficientemente capazes de impedir-me de prosseguir com esse amor, o amor era incessante, pungente a cada hora que transcorria. Eu não me importava. Eu não tinha controle sobre mim, eu só sabia odiar o pai. O pai era o culpado e não eu, o pai era um monstro e não eu, eu amava-a e o meu amor era retribuído, pensava na loucura desse amor quando me encontrava distante dela, porque perto, eu nem sabia o que era pensar. Acho que o pai nunca soube do meu romance com Valquíria, nunca soube e se alguma vez desconfiou, foi mais cretino do que eu imaginava que ele fosse. Nosso caso só se concretizou quando ela atingiu a maioridade, nos guardamos um para o outro, secretamente. Jorge não demonstrou qualquer reação quando eu lhe contei que estava namorando Valquíria, parecia até não ter escutado, ele foi o único que soube, eu gostava dele, confiava nele.
Valquíria entrou pra uma universidade com muito esforço, eu acompanhei toda a sua luta, e o seu desempenho fora brilhante, eu a admirava. Só que com isso, mudou-se para o campus logo no primeiro semestre, e me deixou uma carta de amor, de despedida, que dizia:
“Meu Amado Henrique, meu coração sempre estará com você, jamais esquecerei de você, você é muito importante pra mim, jamais iria se não possuísse esse sonho, de me formar e ser alguém, e exercer uma profissão da qual futuramente me orgulharei em muito, deixo essa cidade com uma enorme tristeza no peito, vou e deixo parte de mim aqui, não estou completamente feliz e só poderei sê-lo quando unirmos nossas vidas, construindo um lar ao seu lado, casar-me e ter filhos, ahhh Henrique, nossos filhos... Teremos muitos, espere por mim meu amor, que logo eu estarei contigo outra vez, pra sempre.”
Ao terminar de ler, meu peito inchou-se bruscamente, como me doía, como era revoltante perdê-la, como eu sofri a sua partida!
Ela jamais voltaria pra mim, jamais. O destino que ela escolhera levara-a a morte, o ônibus que a transportava derrapou provocando a morte de futuros estudantes de medicina, quase na ultima etapa da viajem, ela não chegou ao seu sonho e nem cumpriria o que prometera, de ficar comigo pra sempre.
O pai demonstrou profundo pesar com a morte da minha amada, tinha consciência de que eu era muito próximo de Valquíria, sabia-nos sempre juntos, o pai sempre foi muito emotivo, sofrera junto comigo, mas eu bem sabia o por quê.
A noticia de sua morte acabou comigo, por longos meses me tornei um inerte, um morto-vivo. Foi então que Jorge aproximou-se abusivamente de mim, e de certa forma, fora um bom amigo. Eu já desiludido com o mundo, com tudo e todos, fui tornando-me ainda pior, cada dia pior. Agia politicamente incorreto com tudo e todos, o Jorge tinha um dom, ele desinteressadamente inspirava as piores coisas, era de fato uma má influência pra minha cabeça fraca e alienada.
Eu me tornei um fantoche nas mãos dele, um robô, não possuía mais opinião, era guiado pelas dele. Surgiu o convite de casar-me com Lurdes, tia de Jorge, agarrei-me cegamente a essa maravilhosa perspectiva de vida. Dois anos depois da morte de Valquíria eu deixava a cidade, não totalmente recuperado do choque, mas tomado pelo desejo de viver intensamente.
-Henrique? Gritavam assustados, Bentinho e o pai, eu havia desmaiado, estava estirado no chão, cada um usou de sua força para me colocar deitado no quarto, meu antigo quarto. Fui levado por ambos, ainda desacordado, porém, com os ouvidos prestativos.
-Henrique? Sacudiam-me na cama e gritavam desesperados os dois. Minhas pálpebras foram vencendo a lerdeza dos pensamentos, de cerradas evoluíram para semicerradas, em poucos instantes meus olhos podiam contemplar amistosamente a preocupação tão gratificante do pai. Bentinho detinha minhas mãos nas suas, eram doces os afagos de suas mãos. Eram bonitos os cabelos ondulados e embranquecidos do pai. Havia uma infame, contudo grandiosa felicidade por tê-los junto comigo, depois de tantas desventuras, tantas desavenças.

data...2005 (entre julho,agosto)