Entro pela porta polida em casa alheia. Sento-me diante
da mesa posta em uma poltrona confortável. Sou indiferente
aos aspectos da moradia, mas fito de maneira teimosa, e
incessante, a janela acortinada que isola o oxigênio bondoso.
Se as crianças tropeçam no tapete ou se o armazém priva-as da
refeição, não movo sequer um dedo, não esboço qualquer
atitude de socorro. Os anfitriões me cercam e colorem a casa e
constroem castelos e perfumam o ar, mas algo me diz que lá
fora está a verdadeira razão de ser. Eu me levanto, rodeio a
janela obscura e incerta, torno a sentar e levantar, dou voltas e
me canso, observo os detalhes mas sou surdo, cresço em anos e
me sento, levanto-me apressado e tenho um sorriso impaciente
e angustiado, tenho muita calma e sofro pelo absurdo de ser,
volto-lhes as costas e me chamam, acariciam, me prendem e
pedem, tocam minha música e esperam. Em rodeios e rodopios
alucinados, e diários e noturnos, a casa cresce, desenfreada, e
me absorve, e eu revido e a absorvo, e novo jogo de existir é
posto sobre a mesa posta, e ainda não haverei de descortinar
um pequeno ponto de saída em meio ao gigante ambiente do
dia-a-dia. Olho ao meu redor e aperto os olhos e não
compreendo, e falo e ouço risadas soltas em ambiente de gala,
subo e desço escadas, penetro quartos e salões, que casa! Já
não é moradia alheia, chamam-me filho, trocam minha roupa e
beijo meus irmãos, que triste pesadelo. E finalmente me
deixam partir, para a escola, para o cinema, até a porta ou
janela para chorar no enterro que parte. Eu me revolto e fico
impassível e doente, todos adoecem comigo, mas os hinos da
salvação entoam o chamado e correm os médicos e
curandeiros, soletram e insistem, amam e suplicam, e eu cedo
aos encantos de uma criatura inocente e bela que me cerca e
me dá as mãos, e juntos corremos pelos jardins da sala ao lado,
alegres, esquecidos e descontraídos, aflito, não esqueça de
lavar as orelhas! Após o jantar há festas e planos, as mães
contam histórias e eu empalideço, dizem é-assim e nada ouço,
e rezam por mim e eu pergunto por quê, esperam que assimseja
e simulo distração, e aos poucos sou vencido por mim
mesmo, o cansaço, a dor e a agonia dos vencidos, a carreira da
liberdade furtada, o comportamento impensado e insuspeito do
prisioneiro sem escolhas. E a obsessão da fuga criando janelas
irreais nas paredes do quarto, do corredor, da razão filosófica,
num triste caminhar da mesa posta à escarradeira doméstica de
todos nós. E novos há que de todos os lados chegam à casa
alheia, a minha casa perfumada e colorida, com cores novas e
perturbadoras nos olhos eu perfumo o ar e acaricio e troco as
roupas, e tenho sonhos horríveis à noite, e tenho amigos e uma
vaga ocupação- é o início! E de repente sobressalta-me a figura
de uma tenebrosa janela e o medo de partir me assola o
coração, e eu escondo o rosto cansado nas mãos sofridas e me
sento, e de costas para a janela de outrora esboço os inícios de
uma história, criticada, cansada, tão fútil! E pinto várias janelas
coloridas e janelas iguais e janelas rasgadas, uma a uma, todas
as histórias, empoeiradas e guardadas, esperando qualquer
coisa que as distraia, a televisão, o jantar, chega! Senão
enlouqueço ou aceito! E novos seres sempre surgem,
brincando, tentando, seres invisíveis que cantam em meus
ouvidos e recebem as blasfêmias com gratidão, conciliação,
paciência, não! Não irei sujar-me com a corrupção da sensatez!
E sou posto ao centro da roda da confusão e grito e choro, e
estou deitado na cama do quarto, pensando, existindo,
negando. E me descubro em delírio, mortalmente ferido, até o
último de meus dias, de asas partidas, de alma livre que flutua
e carrega consigo os humores da aflição, por entre nuvens e
bem alto, se despencar morro, se mantiver fujo. E novamente a
mesa posta, todos sentem o meu gosto, comida com sabor
estranho, todos os dissabores, amargos e doces, e meu paladar
é amorfo, conforme o fundo do poço, bem fundo e escuro,
silencioso e indecifrável, difícil de penetrar, de escapar, tapar,
fechar os sentidos e dissimular o ser, tudo ser, ser, nada, a
gargalhada, a ironia, a imperfeição do ser perfeito, agasalhado,
com frio, seu pai e filho, seu abrigo alheio, sua casca, o próprio
ser prendendo o ser - a porta da criação, a janela da alma, as
cortinas do ser, a mesa da aflição. A sua casa alheia.

MARCELO GOMES JORGE FERES
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