A parte que nos falta

A parte que nos falta

                              Nossas crianças já foram crianças um dia.
Já correram na chuva, já brincaram na areia.
Já tiveram medo de puxão de orelha...
Já levaram palmadinhas de repreensão.
Nossas crianças já deram lugar aos idosos,
já carregaram as bagagens alheias,
já foram "empiriquitadas", "engomadas" e também "descabeladas".
Já tiveram medo, já choraram por isso.
Já foram educadas, e já esconderam as notas vermelhas...
Nossas crianças já brincaram na rua,
de esconde-esconde, pega-pega e roda cutia...
Já cantarolaram canções antigas...
Já tiveram medo do velho do saco, do bicho papão,
de chuva forte...
 Nossas crianças foram crianças até o dia que alguém disse que repreender era errado,
que assistir TV era mais seguro que correr na rua,
que palmadas eram consideradas crime....
Passaram a ser educadas ouvindo "sim" para tudo
e com uma ampla liberdade de ação.
Perderam sua ingenuidade mas tornaram-se covardes
e não pensam mais em subir na vida, apenas, em tomar o lugar de outros.
Elas não brincam mais de bola,
trocam os carrinhos por veículos de verdade
e suicidam-se nas avenidas da cidade
acreditando que tudo é pura diversão.
As cantigas de roda, substituidas
por um ritmo vulgar sexualmente insinuante
que faz das bonecas de pano, bebês de verdade..
 Elas não escondem mais as notas vermelhas,
não têm mais medo dos puxões de orelha
e prá ser franca, nem freqüentam mais a escola...
São "educadas" de forma a acreditar
que não adianta tentar mudar
porque não são responsáveis pelo que acontece.
Por isso, cruzam os braços para a sociedade
no rítmo de "cada um por si, Deus por todos"
e induzidas a pensar que "a culpa é dos outros"
crescem como homens, mas não como cidadãos.
Nossas crianças perderam a inocência, perderam a infância.
E hoje temos frutos maduros... e podres antes do tempo.
É preciso admitir que não temos mais crianças,
temos homens covardes cegos em sua inconsciência
que foram criados e "educados" por nós.
 Por isso, muitas vezes nos manifestamos contra
àqueles que, porventura, decidem recuperar nosso pomar.
Agimos como tantos outros que disseram que "palmadas" eram crime.
Que julgaram a correção como erro.
E permanecemos no círculo vicioso que criamos,
porque acreditamos cegamente que nossas crianças ainda são crianças
e por isso merecem um "sim" para tudo.
"Sim" para a ampla liberdade que continuamos concedendo à elas...
Ampla liberdade que as fez perder o medo e a dignidade
e ao mesmo tempo as tornou covardes...
 
Nossas crianças já foram crianças um dia.
Eram crianças enquanto corriam na chuva e brincavam na areia.
Depois, trocaram sua inocência por armas de verdade
e passaram a matar de verdade não apenas o próximo,
como todo o futuro que poderiam construir...
É preciso admitir que não temos mais crianças.
É preciso aceitar que os seres que existem possuem sim
consciência de seus atos.
É preciso reconhecer que foram as nossas escolhas
que contaminaram nosso pomar, apodrecendo nossos frutos,
e elas continuarão contaminando muitos outros
enquanto permanecermos acreditando
que crianças existem...
 

"...Elas não brincam mais de bola,
trocam os carrinhos por veículos de verdade
e suicidam-se nas avenidas da cidade
acreditando que tudo é pura diversão..."

Sarandi-PR - 03/2007

Seile Manuele Corrêa
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