Depressões a parte...

 
Eu tive uma infância dura.  Igual a tantas outras pessoas que conheço.
Alias, no bairro onde eu cresci, era esse o lugar comum.  Nunca passei fome, graças a Deus. E graças a minha mãe que sempre deu duro, de sol a sol,  pra sustentar os filhos (somos três).
Não tive Nintendo, celular, notebook, nem nada desse tipo.  Também, naquele tempo, nada disso existia.
Nossos brinquedos eram uma lata de leite glória furada, que a gente transformava em carrinho de puxar.  Peão de goiabeira, que meu avô esculpia com as próprias mãos.  As pipas que eu mesmo fazia e encapava com papel fino (as vezes com papel de pão mesmo, pois era  o que havia). 
Brincava de pique-esconde, pique-lateiro, Pega-pega.   Jogava “pelada” no terreno baldio, apelidado de “rala-coco”.
 
Tive uma infância dura, simples e feliz...
 
Já adulto, senti tantas vezes os revezes comuns à maioria dos brasileiros.  
Nos momentos mais difíceis, vendi jornais velhos pra comprar pão e pagar a passagem do ônibus pro trabalho.
 
Nada disso nunca me incomodou.  Ao contrário, sempre serviu de estímulo pra melhorar, pra correr atrás.  Pra seguir em frente.
 
Hoje, bem sucedido, tenho minha casa  (uma boa casa), dois carros e 50% de um barco a motor (embora, para navegar, eu sempre precise dos outros 50%, de propriedade de um grande amigo e socio. Pescador e mentiroso, assim como eu).
Nada me falta,  que eu precise ou deseje.
Olho pra trás e vejo com orgulho os momentos de dificuldade pelos quais passei.  Sopesando, com uma certa ponta de vaidade, o lugar de onde eu vim, e o lugar aonde  eu cheguei.
 
No curso de sobrevivência da vida, me graduei com louvor...
 
Outro dia, li aqui mesmo no site, alguma coisa a respeito de uma tal “barata de Kafka”.  Pensei cá com meus botões: Sou eu esse bicho.   Sou uma barata de Kafka
 
Mesmo o mito kafkiano,  não considerou que a blattoptera (segundo estudos científicos amplamente difundidos), apesar de seu rastejante chafurdar nos submundos da sociedade, seria um dos poucos a sobreviver, mesmo a um holocausto nuclear, tal a sua capacidade de superar, mesmo as situações mais adversas e os ambientes mais insalubres. Só sendo talvez superada pelo Tardígrado. Esse, infelizmente. não tendo sido considerado nas divagações do prodigioso escritor.
 
Sou uma asquerosa e sobrevivente barata de Kafka...
 
Hoje, olho a minha volta, tantas pessoas sofrendo.  Incapacitados de seguir em frente, de dar a volta por cima.  Impedidos de esboçar uma reação por essa maldita doença chamada DEPRESSÃO.  Essa psicossomia incapacitante (que já se tornou um mal do século), que impele um indivíduo a morrer de sede com um copo de água ao seu alcance, por se tornar simplesmente incapaz de estender a mão e pegar o copo.  As pessoas sãs, não conseguem entender o porque dessa letargia absurda.  Também pudera.  Não existe um porque.  Apenas a mente ergue barreiras intransponíveis. Causando uma inibição tão poderosa, impossível de ser quebrada, mesmo estando em jogo, por vezes, a própria subsistência.
Tendo convivido ( ou melhor, sobrevivido) com esse mal (que na minha época, não estava tão na moda assim), a minha vida inteira, aprendi a dissociar mente e corpo, permitindo ao corpo reagir (de forma autômata), mesmo a parte inconsciente da mente, estando paralisada por um bloqueio que a parte consciente sabe ser apenas imaginário. Mas que mesmo assim, cria um impedimento insuperável.
Tais subterfúgios permitem, por exemplo, que eu esteja aqui, agora, escrevendo enquanto uma parte de mim, semi-dopada por medicamentos que, por sua baixa gramatura, já não fazem assim tanto efeito.  De modos que peço desculpas pelos meus erros de ortografia e por alguns acentos, principalmente o de exclamação que, eu simplesmente não consigo achar hoje nesse raio de teclado...
 
Voltando ao foco, as minhas mazelas e idiossincrasias,  já há muito assimiladas nesse processo interminável de viver e sobreviver, pouco me incomodam.   Contrapartida, todo esse sofrimento a minha volta, tornou-se tão insuportável que por vezes, como agora, por exemplo,  necessito me trancar no quarto de forma a não tomar conhecimento do sofrimento do mundo lá fora.  Conhecimento ao qual, tenho as vezes o temor de não ser capaz de sobreviver.
 
Tudo isso, porém, é surpreendente temporário.
 
Os tardígrados e as baratas, sempre dão um jeito...

BRUNO
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