A HERANÇA ( conto )

A HERANÇA    ( conto )

 

Eneida observava da janela do segundo andar, sem ser notada, o caminhão aberto levando a mudança do terceiro irmão, o último a deixar a residência com sua família. Na expressão de sua face a emoção da vitória, vencera a todos eles, um a um.


Herdeiros de uma velha mansão, relíquia das áureas épocas, em que seus bisavós, imigrantes italianos, amealharam riquezas com o cultivo do café. Naquela casa residiram quatro gerações de sua família. Não conseguiram acompanhar as mudanças econômicas, perderam as terras, restando apenas aquela residência, imensa.


Nunca se esquecera, voto vencido, sequer deram ouvidos às suas argumentações, decidiram os irmãos, à mesa, juntamente com suas esposas, a retirada dos retratos dos antepassados das paredes, julgavam ultrapassado na modernidade suas exposições. Não perdoava as observações pejorativas ouvidas naquela noite, a de que a lembrança daqueles rostos davam ao lugar uma aparência de museu, coisa lúgubre. Deviam aos mais velhos, sobretudo aos bisavós, já que os descendentes posteriores colecionaram derrocadas, aquela moradia a acolhê-los.


Conservadora, jamais se consorciara ficando como a única solteira, dentre outros três irmãos homens. Todos moraram naquela propriedade, ali nasceram seus sobrinhos. Pensou em censurá-los por considerarem as fotografias com descasos, mas, precavida, vencida na sua opinião, não dada a manifestações polêmicas, acatou a decisão majoritária. Os quadros foram para o sótão, embalados cuidadosamente por ela.


De vida regrada, hábitos modestos, guardava suas economias, a aposentadoria do serviço público, quase inteira. Participava das despesas na proporção dividida por cada pessoa habitante da casa. Raramente saia, ficava muito tempo ocupando-se nos vários cômodos, dispensara empregados por não ter como mantê-los. Passar os dias perambulando pelos três andares, era a sua vida. 


Temia a fragilidade financeira de seus irmãos, não afortunados em suas tarefas, vivendo constantemente desempregados. Não raro, em discussões conjugais, ouvia os reclamos de suas esposas, reivindicando que se desfizessem daquele “mausoléu” e dividissem a parte de cada um. Assim, poderiam tentar a sorte com algum negócio próprio, já que a idade chegava para todos, minguando as oportunidades de empregos, seletivos e prioritários aos mais jovens. Momentos em que se sobressaltava em tormentos íntimos. Amava aquele teto, dava-lhe uma sensação de proteção e aconchego, sentimentos não partilhados pelos demais, que, na verdade, consideravam aquilo um elefante branco. 


Esconjuravam-se, irmãos e cunhadas, a permanência naquela moradia. Com sua aparência decrépita, por falta de manutenção, e, apesar disso, destacava-se com imponência  no bairro, já rodeado por espigões comerciais. Fora tombado pelo patrimônio histórico, os isentando dos impostos municipais, todavia, afastava qualquer pretendente de comprá-la.


 Exceto ela, os demais maldiziam aquela medida, destarte tentaram desfazê-la, sem êxitos. Poderiam vendê-la, contudo, o futuro comprador não poderia alterá-la em suas características históricas, afastando interessados na especulação imobiliária, a desejarem no chão, demolida.
 
Mas vivia a apreensão de ter que abrir mão do casarão, era minoria na decisão, bastaria que alguém se aventurasse a comprá-lo. O tempo parecia conspirar contra ela, pois os irmãos, ora um ou outro, entregavam-se ao desespero, não obtendo trabalho e cogitando livrar-se da casa, como última alternativa de terem uma saída, um capital inicial. As suas cunhadas, aparentando maior insatisfação, os estimulavam a livrarem-se do problema e terem uma chance de reerguerem-se, pretextando a venda.


Certo dia, o primeiro irmão, aparentando ansiedade, confessou que tinha um negócio a fazer, parecia muito bom, retorno garantido, mas teria que investir uma importância que não tinha. A conversa deu-se na cozinha, com sua esposa, onde ela também se encontrava. O valor que falavam não era muito expressivo, suas economias eram bem superiores ao que pediam. Nenhum deles sabiam de suas posses, todos os salários e depois  a aposentadoria economizados, corrigidos em aplicações, por anos.  Não se envolvia em assuntos privados dos irmãos, apenas a conversa a interessou quando o mesmo, contrariado, manifestou desejo de vender a sua parte naquela herança. Alegava ter um patrimônio, porém estava de mãos atadas, reclamava consigo mesmo e com sua esposa. Estava amarrado, sem conseguir realizar nada, impedidos de disporem do espólio.


Temia sempre a investida dos outros herdeiros sobre a propriedade, já tinha tido uma experiência cruel com os quadros, foi voto vencido. Se eles resolvessem desfazer do imóvel, por qualquer valor, poderiam achar interessados, apesar das restrições. Caso isso ocorresse,  ela estaria em situação minoritária e perderia qualquer chance de prevalecer a sua vontade. Num repente, contrariando sua aparente neutralidade em assuntos tais, como se no íntimo aguardasse aquele momento, sugeriu interesse em ficar com a parte do irmão, mediante a quantia de que necessitava. Evidentemente com documentos e a aquiescência dos demais, a figurarem na cessão de direitos como testemunhas, tudo registrado em cartório de registro de imóveis. Mulher bem informada, sabia das implicações e dos direitos envolvidos na compra.


Mal acreditando no que ouviam, marido e esposa exultaram, afinal, mudariam daquela casa e tentariam um negócio próprio, parecia um sonho para eles, e, secretamente, atendiam os desejos dela. Olhavam agradecidos, aparentemente ela lhes estendia as mãos, os ajudavam.
 
  De si para si, contabilizava não mais uma quarta parte, mas a metade da participação na herança, no mínimo não disporiam de suas partes sem seu expresso consentimento. Ou seja, os restantes dependiam exclusivamente dela para intentarem qualquer transação sobre o imóvel.

A partir de então, questão de tempo, já não tinha tanta pressa, ninguém haveria de se aventurar a comprar as partes dos demais.  Os acontecimentos, previsíveis, ocorreram, onde ela foi considerada como a benfeitora também dos outros irmãos, ajudando-os em suas recorrentes desventuras. Estes, pressionados por suas esposas, desejando novas oportunidades, acabaram fascinados pelo  socorro, embora por valores bem inferiores aos pagos na primeira compra. Eneida tornava-se a detentora da totalidade daquele bem.


 

 
Observava a derradeira das três mudanças.   A casa, já enorme, ficava ainda  maior, silenciosa com suas paredes e histórias. Aos irmãos figuravam como um grande negócio, visto que não viam como se verem livres da propriedade, reclamando reparos, e tolhida em seu valor pelas restrições legais.


Da janela, observava os últimos móveis sendo colocados na carroceria do veículo, os sobrinhos e a cunhada atarefados no entra e sai buscando suas mobílias. Todos pareciam felizes com o recomeço de uma nova vida, ela sorria na paz de sua solidão. 


Na parede, voltavam ao panteão os antepassados ressurgidos do ostracismo, anistiados pelos cuidados da descendente, tendo como pretensão futura dela, colocar-se entre eles, com seu retrato, imortalizada na família.
 
 Eneida aboletou-se finalmente na rota poltrona, num canto da sala, respirou fundo e pensou aliviada em sua imensa casa, só sua.
Nos corredores, apenas os ruídos dos seus passos miúdos, ou, vez ou outra, dos ratos no sótão e no porão, e os arrulhos dos pombos nas calhas encarquilhadas no teto.

 




 

 

..resolvi acrescentar um parágrafo a mais no texto, atendendo sugestão do colega deste site, FRED DE MENEZES, a quem, de público, agradeço o alvitre, totalmente identificado com o clima do enredo. Assim, o penúltimo parágrafo é de sua autoria, tornando-nos coautores.

È dele a contribuição: " Eneida aboletou-se finalmente na rota poltrona, num canto da sala, respirou fundo e pensou aliviada em sua imensa casa, só sua".

** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.