Essa Paixão está me Cegando

Essa Paixão está me Cegando


Essa paixão está me cegando 
 
Tenho uma mesa de quatro lugares que me acompanha a vinte e dois anos. É de cerejeira,  com  ripas estreitas organizadas lado a lado; entre elas uma reentrância, onde acumulam algumas sujeirinhas que são limpas com  escova própria. É o móvel mais antigo da casa. Por ela nutro respeito, pois já testemunhou muitos acontecimentos importantes. Pode parecer bobagem, mas os objetos estão impregnados pelas energias  subjetivas de seus donos.
Esta mesa está  na cozinha, mas já esteve em outros lugares da casa. Eu a adquiri quando solteira; fiz questão de levá-la comigo quando deixei a casa materna.
Não costumo ficar muito tempo com um móvel; já troquei de sofá várias vezes,  o último,  foi um de veludo vermelho,  que o cachorro destruiu quando eu estava ausente. Troquei de geladeira,  pois a velha, sem a tampa do congelador,  produzia enormes icebergs. Troquei o fogão, os armários, a casa, o carro e troquei a cama, quando troquei o marido. É de praxe!
A mesa ainda está comigo, cúmplice dos meus atos, companheira de todas as horas.   Com ela sorri, cantei, chorei, escrevi, desenhei, orei,  comi, servi, ensinei, festejei.
Mas agora,  a família cresceu e esta velha mesa já não comporta mais o número de habitantes da casa. Os pés já estão bambos e não agüentam o rojão.  Vive encostada na parede buscando firmeza para não cair de vez.
Há tempos,  venho repetindo que ela precisa de conserto, mas nada foi feito para que remoçasse.  Quando suas  pernas abrem, simulando uma queda, a coitada recebe uma pancada, que por força da violência acaba se aprumando.
Tem  outra coisa,  que ainda não tive coragem de falar... Estou gostando de outra mesa... Ela é grande, bonita e atende a doze pessoas. Coincidentemente parece com a  mesa que  Leonardo da Vinci pincelou na  Santa Ceia. 
Essa  paixão está me cegando e me impedindo de solucionar com justiça a causa da minha velha mesa.  Não posso como Judas, trair a quem me serviu por tanto tempo.
A solução então seria aposentar a velha mesa com dignidade, dar a ela um lugar de destaque,  um conserto digno, repousá-la em um canto decorativo da casa, onde pudesse exibir uma linda toalha de crochê e um jarro de flores sempre frescas. Assim ela continuaria comigo e me veria envelhecer junto com ela.
E quando eu partir desta para melhor, é provável que ela ainda exista. Por isso,  deixarei aos meus filhos a seguinte instrução: _ Cuidem dessa mesa, pois ela cuidou de vocês durante todos esses anos. Móveis velhos são relíquias, não precisam ser descartados, se misturados aos novos podem compor elegantes ambientes e contar muitas histórias.
 
Selma Nardacci, 13 de outubro de 2011.

Selma Nardacci dos Reis
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