VOO SOLITÁRIO ( CONTO )

VOO SOLITÁRIO  ( CONTO )

 
A aglomeração na rua atestava  a tragédia. Um corpo coberto por jornais. Ao alto, uma janela escancarada, onde sobressaía esvoaçante cortina, como denunciando os fatos, presumindo o enredo.

O que teria levado alguém a atirar-se, em um ato suicida? O apartamento pertencia a um homem só, viúvo há anos, de vida pacata, cortês com os vizinhos, no recato de seus hábitos. Morador sozinho, de vida comedida, bom astral, que descia para dar uma volta pelas redondezas, tomar um café na padaria, comprar jornais, um trivial de sua rotina invariável. De natureza reservada, pouco sabia- se de sua história de vida, raramente recebia visitas, quando acontecia eram antigos colegas de serviço, todos aposentados, como ele. Ao que tudo indicava não havia recebido ninguém, nem sinal de arrombamento na porta ou de lutas. Nenhum vizinho ouvira nada, apenas o baque seco do corpo no asfalto e gritos dos passantes, assustados com aquela cena.

 

Persistia em todos os olhares a mesma interrogação, teria sido apenas um acidente, ou a constatação de que aquele homem resolvera acabar com a sua própria vida ?

 

Alfredo percebeu-se incomodado, pressentia a presença de alguém junto a si, dava de ombros, fingia não dar atenção. Porém, com o passar dos dias aquilo passou a aborrecê-lo, afinal, não havia ninguém, além dele, no apartamento. Homem sério, não dado a crendices e superstições, sentia-se acompanhado, embora estivesse só. Mesmo folheando o seu jornal ou abstraído na leitura de um livro, sentia-se acompanhado. A sensação de que compartilhava com o outro todos os seus gestos e gostos. Parecia que o acompanhante imaginário também lia a mesma leitura, justaposto a ele, confundindo-se ambos em uma só pessoa.

Então, baixando os olhos da leitura, recostado na poltrona da sala, ficava atento, demonstrando querer saber o que ocorria. O silêncio e seus sons, soltos, murmurados, não lhe davam respostas e nem pistas para aquele estranho pressentimento. Aonde andaria este alguém, oculto em algum canto, ou seria uma dedução, presunção ?

 

 O silêncio por vezes ensurdece, incomodam seus tons, ruídos, melhor não tentar ouvi-los... Besteira, que asneira aquela que o levava a admitir a existência de um intruso que não se fazia aparecer ? 

O fato é que não era louco, estava plenamente ciente de seus atos, a presença alheia, de tão próxima de si, parecia não lhe deixar dúvidas. Andou vagarosamente pela casa, indo em todos os cômodos, verificando cuidadosamente, e nada. 

 

Acostumado há anos à solidão, a viver sozinho, apurara os ouvidos ao mínimo ruído, sim, todavia não houvesse sons estranhos, por certo alguém o seguia, melhor, estava consigo, como se interiorizado em seu corpo, estando com ele em todos os momentos, implacavelmente. Olhos e sentidos alertas, segredos em momentos, revividos no vácuo, trazidos de passados, revividos, relembrados, nada que detectasse a existência de alguém além de si mesmo. Passara a se observar como se fosse outra pessoa, alguém além de si mesmo. 

 

O que estaria acontecendo consigo ? Por mais surreal que pudesse parecer passou a se policiar, a se inquirir em pensamentos, tentando livrar-se daquela estranha companhia, não vista, mas percebida. Nunca foi dado a abstrações e conjecturas sobre qualquer assunto de  ordem psicológica ou espiritual, jamais admitindo fenômenos de outras naturezas. Estava aturdido, preocupado, sentindo-se perigosamente em sua sanidade mental, aprendera a ouvir a própria respiração, colhendo sons do silêncio, na algaravia perturbadora a inquietá-lo, machucando, remexendo em torturas sem ecos e sentidos lógicos.

 

Fisicamente estava bem, não havia reclamações de dores, estava, inclusive, disposto. Somente aquela impressão muito forte, diria real, de que era seguido, ou pior, a possibilidade assustadora de ser dois em um só corpo.

Refutava ao admitir tal possibilidade, antes inacreditável. Quem era ? Pela primeira vez começou a se questionar, seria a visão que temos de nós uma idealização imaginada, dubiedades construídas ?  Nos construímos pela mutabilidade das aparências, de acordo com as conveniências assumidas pelo meio social, como camaleões na natureza, adaptando-se conforme a situação ? Coabitando o desconhecido, habitando o mesmo Ser, coexistindo sem questionar, andando sobre os passos, reflexos na mesma sombra, a identidade compartilhada... Estava delirando, fora de si, de seu juízo, infelizmente duvidava de sua sanidade pela primeira vez em toda a sua vida, haveria de buscar ajuda profissional, precisava, com urgência, dar fim àquele suplício.

 

Os pensamentos, como se tivessem vida própria, desenhavam conclusões que fugiam ao real das coisas que sempre aprendera, o lógico e o concreto. Não queria pensar em nada, dar um tempo a si mesmo, tomar pé da situação que cada vez mais o assustava, porque parecia não mais se dominar em suas próprias idéias.

 

Que despropósito era aquele, concluindo coisas que jamais pensara antes, tal como passar a vida na figura idealizada, incólume pela existência pelo não questionamento, sem se conhecer, caminhando juntos, duas personalidades distintas, sem se apresentar, ignorando quem fosse, na ilusão de si mesmo.

 

Estaria ele produzindo aqueles pensamentos ou apenas os ouvia como se fossem seus ?  Nunca pensou em tais possibilidades, não se dava a abstrações filosóficas ou literárias, já não estava se reconhecendo em seu juízo perfeito.

A mente, como independente de si, caminhava em cogitações estranhas, a dizer, como se fosse uma criação sua, de que somos ambulantes, carregando sonhos, fantasias e utopias. Fetiches e alegorias, sempre mercadejamos ilusões para nos sentirmos sãos... sanidade periclitante, hesitante, preocupante, angustiante.  Meu Deus, o que era aquilo ?  Assistia apavorado, como produto de suas reflexões mesmo não sendo. O que estava dizendo, digo, pensando? Que somos trânsfugas, fugindo da raia, do fio da navalha das angústias, que preferimos a fuga, nas lutas renhidas de um eterno amanhã, carregando o fardo hoje  presente, na correnteza de uma vida sem sentido...

 

Nunca se sentira tão só, tão premido em seu desespero, seria o fim ?

 

Altas horas, todos dormem, ressonam, alguns se inquietam, como ele, ou seria como o outro dentro de si ?  Cada som, ruídos indivisíveis o acompanham, silenciosos brados mudos, só ele, e ele só. Não há ecos e respostas, está nu diante de si, sem cúmplices naquela aventura medonha, a vergastar suas convicções atirando-o no precipício da insanidade. Sente-se duplo, como se fossem dois eus, um que reconhece como a sua identidade, o outro que estranha, que o instiga para labirintos indesejáveis, alguém que anseia, trava batalhas íntimas, se indigna, brada em sussurros, intermitentes, como a lhe conferir uma pausa para entendê-lo na incompreensão de suas idéias.

 

Admitir-se duplo, parece lhe conferir algum alívio, afasta de si os torvelinhos da loucura, passa a ser espectador do outro que hospeda em si mesmo... 

Já admitido o outro como hóspede indesejável, digladiam-se, discutem, como se fossem dois entes independentes. Um tenta dominar a situação, apascenta a ira, sublima a dor, tenta manter o equilíbrio, confundem-se, impotentes aos fatos, anulam-se. Um se tortura na incerteza, outro aquieta nos contrastes, não se conciliam, se aturam, dão tréguas, acorrentados, convivem em paradoxos.

 

Nas longas vigílias noturnas, dias seguidos de perturbações intensas, empapado de suor, murmúrios em suspense e arrepios, desalentado, pausa na luz da manhã, invadindo em frestas as cortinas de um novo dia...

 

 Supliciado, um homem, em busca da liberdade, voa no espaço...

 

*CONTO SELECIONADO PARA FIGURAR NO LIVRO NA ANTOLOGIA "CONTOS DE ARREPIAR", EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, FEVEREIRO DE 2012.

 

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE-RJ, ABRIL DE 2012.