SOMBRAS NA NOITE ( conto)

SOMBRAS NA NOITE  ( conto)

 
 
Muitos recolhem-se , depois da jornada diária de trabalho, as ruas, aos poucos, recebem novos transeuntes, alguns a ficarem em suas esquinas, outros mais sofisticados em outros ambientes.
 
Figuras noturnas, clandestinas identidades, anseios palpitando em corações de corpos ardentes. Inebriados em busca de sensações, alucinadas procuras, angustiosos na ânsia insana de preencherem vazios da existência. Têm nas fisionomias traços risonhos, festivos, diferem de suas vidas à luz do sol, estão permissíveis às aventuras sem censuras.
 
Caminhantes nas tresloucadas idas, por  noites insones, ocultas personagens no raiar dos dias. Assim é como se apresentam, em deboches, berloques de enfeites, acompanham a música que lhes tocam,
Oferecem o calor de seus corpos mediante pagamento. Habitam sonhos dos desiludidos, cicerones nas madrugadas, alegres e festivas. Vagam como mariposas em torno da luz, notívagas dos prazeres. Personagens que tornam-se  bizarras nas vestimentas impróprias às luzes do amanhecer, desambientadas no claro das ruas. Recolhem-se no alvorecer, como habitantes noturnos incomodadas na luz solar, feito morcegos.
 
Difusos raciocínios, obliterados nas bebidas, egos em desgovernos, dançam no ritmo dos desesperos, em gozos fluídos nas emoções inexistentes, aninhando carícias em corpos de aluguel. Mundo fantasioso, palco de ilusões, embalagem de purpurinas e neons, aparências que não denunciam os íntimos sofridos, distantes, moribundos. Calor emprestado, fátuo, efêmero, sentimentos não encontrados  em nenhum Ser por empréstimos, não disponível e nem comercializado.
 
Trânsfugas embevecidos pelos sentidos da matéria, rescendendo odores etílicos, brindes em lágrimas disfarçadas em risos, crianças assustadas, no ritmo da valsa dos desesperados. Companheiros de solidão, uivos lamentos de lobos distantes da matilha, envolvidos na atmosfera inebriante das transitórias alegrias. Alcoólicos ares empesteando os olfatos, mentes destravadas  a extravasarem suas mágoas e lamúrias. Balanços anestesiados de seus rancores, lembranças funestas, hilárias e doloridas. Anestesiados, acalmados em cada gole em garrafas vazias, solitários murmúrios. Frenesis dos tímidos, ébrios a entoarem seus cânticos desafinados e desconexos, em falsas demonstrações eufóricas. Caricatas figuras das alegrias compradas, vernizes de realidades ocultas, incabíveis à luz do sol. Assembleia de desatinados, dores manifestas em teores de nicotina e álcool, situações hilárias, vivências e amores malamados, pilhérias e insucessos.
 
Universos restritos nos vazios das garrafas entornadas, nos hálitos das bílis saturadas. Em solitárias angústias íntimas, aparentemente compartilhadas, cada qual uma existência e seus enredos, risadas amargas, piedades de si próprios, estrelas embaçadas nos brilhos opacos dos vidros diáfanos dos copos.
Burlesca reunião de convivas solitários em si, brindam e gritam, chorando no íntimo.
 
  Delírios breves em fugidias sensações, pois as trevas não são externas, as das aparências são ausências de luz facilmente disfarçadas, porém as internas são labirintos exigindo soluções, num pêndulo oscilando nas duas estações, obscuras e claras, entre tênues fios da sanidade insana. Largos são os caminhos em desvios trilhados por ilusões e enganos, mente açodada, incomodada no fio da navalha.  Ostentamos um arsenal de disfarces convincentes, disponíveis em qualquer ocasião, escamoteando visíveis perturbações. Contudo, os ecos ecoam de dentro, assustadores, reivindicando saídas, respiram agônicos, turbilhonam as entranhas.
Os desafios não se alteram com os espetáculos dos cenários ilusórios, são perenes e constantes buscas, não importa onde nos encontremos. Somos os nossos próprios enigmas a serem decifrados, conscientes ou não. Os fios das meadas estão em nós, incrustados, indeléveis, a exporem suas garras esculpindo em dores. Labirintos intramuros, em duelos íntimos, ecos mudos, insanos, irreais, folhas nas tempestades, barcos à deriva, desatinos, expostos nos íntimos em aparentes disfarces externos.
 
Miscelânea de impressões, mosaico controvertido, desprovido, por vezes, de sentido lógico. Imagens desfocadas, fragmentos de momentos em arroubos ensandecidos. Repentes inusitados, despropositados, inconvenientes. Passam rápidos, exigindo goles a nutri-los, ágeis como os ventos , deleites fugazes,difusos, uivantes, tristonhos...
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Nas nuances sombrias encontram-se as musas habitantes das noites, vendendo fantasias. São refúgios para os tédios de plácidas vidas, no firmamento fantasioso de estrelas e lua cheia, antes  pântanos de ácidas visões, inebriando os sentidos famintos de seduções. De jardins multicoloridos em flores, traem-se em cheiros nauseantes de pétalas pútridas, renegando frescores de vivas cores. Nem arco-íris pós vendavais a suavizarem os céus nas imprecisões dos temporais, nas telas surreais os alucinados degustadores  das ilusões mitigam os sofreres, oferecidos como prazeres mundanos, em moeda corrente.
 
Vaga o ébrio nas noitadas, o corpo chumbado ao solo sob o peso da prostração, a mente confusa, detido no escafandro da carne encharcada, como um sapo, no brejo pantanoso, apaixonado pela lua distante no firmamento. Anseia, impotente, demente, realçar luzes onde há trevas, somente.
 
Bailando em arsenal de disfarces e ritos, como nos apresentamos. Celebrando cerimônias em mesuras programadas e em risos previsíveis. E, diante a nós, a sós, maquiagem retirada, cara limpa, lavada, sem fugas, artifícios, despidos de alegorias, somente o íntimo escancarado, implacável. Ainda podemos fugir, nos anestesiarmos, rir, dançar, cantar,  acreditar na fugaz alegria e embriagados ressonarmos.  O mais que teremos será um sono pesado, até o amanhecer das rotinas pacíficas e insossas de cada dia, retomando as máscaras das conveniências socialmente aceitas.
 
 Parece que apenas no enlevo das bebedeiras, em instantes de perturbável lucidez, arriscamos nas dores e nos apresentamos a nós mesmos, personagens oscilantes entre luzes e trevas...   
 




 

A IMAGEM É DA TELA DE DI CAVALCANTI, GAFIEIRA.

*Selecionado e publicado em livro de antologia de contos pela CBJE, sendo considerado entre os melhores contos publicados pela editora em 2014.