meuBorges.com - um e-poema de Sandra Pien (II)

(Tradução: Salomão Rovedo)

Canto VII
 
Duvidemos
este não equilíbrio
poderá produzir coerência?
Mais visões múltiplas
milhares de respostas
é um signo dissimulado.
Borges se transtorna
sonha ser viajante
num ônibus em mim
em direção a Almagro Sul
caminho necessário até a bela
língua.
A Divina Comédia
heresia sublime
da invenção cortês
a ele vai revelando-se
desde os amanheceres
durante nove anos férteis
mágico número diluído
no empedrado portenho.
Que dolce stil nuovo
é esta arte do dire parole per
rima
medieval cántica do tremendo
onde a glorificar a una donna
se salva a vida do poeta.
Esta noite sonhada é a de 7 de
abril
de um momento indestrutível
como aquela de 1300
do homem perdido numa selva
escura.
Nove círculos concêntricos
se abrem de seus pés prostrados
se funde a partir da cadência
a cifra o maravilha
em abismos condenação
castigos tenebrosos.
Se deslumbra
pela lei do contrapasso
para Francesca e Paolo
luxuriosos pecadores
aprisionados para sempre
no quinto canto
aquele da borrasca infernal
que nunca termina.
Borges é Alighieri
que sonha em mim
e se compadecem juntos
do destino dos amantes.
Amor que não perdoa que não amemos
Ouve o desdenhado por Florência
poeta do valor de toda uma vida
num único instante.
Homero foi um sonho de Virgilio
Virgilio do de Dante
Dante do de Borges
vates irmanados
afronta existencial
semblante da razão
e clássica sabedoria
viagem alegórica
para salvar toda a essência humana.
Reinado da pena
reinado da esperança
voltarei à luz
murmurou em mim
e no meu paraíso
disse
nostalgia da oração
os dezessete volumes
das Mil e Uma Noites
estarão me esperando.
 
Canto VIII
 
Curioso instante
calmo rosto na vigília
Borges respira aliviado.
Sonha que está em Genebra
a mais promissora
em pequenas felicidades.
Relembra épocas
de vanguardas e
primitivas oscilações
passeando o olhar
por prematuros versos.
Ditoso sonha em mim
as ruas pedregosas
da cidadela
as amáveis livrarias
e seus antigos livreiros
o cantinho do francês genebrino.
Cruza com Abramowicz
se cumprimentam jovialmente
conjurando-se
lapso indestrutível.
Logo voltarão a conversar
a cerca dos cantões
pátria de um e outro.
Borges sonha que caminhamos juntos
nessa sua sublimada cidade
fala de seus antepassados vikings
daquela Londres de G. K. e Father Brown
vagando por entre a imortalidade
coroada
insular urbe et orbe
dos personagens de Shakespeare
das trovas inglesas da avó
Haslam
da espada do avô Borges
coronel de um monte de fantasmas
poncho branco
tordilho ao vento
toque de clarim até a morte
protetor dessa velha virtude argentina
o individualismo.
Fala de compatriotas
de Juan López e John Ward
dos índios dos pampas
evocação das planícies do sul.
Me sugere
mares de campos
o sabor de uma saga
vastidão de um milênio.
Estou disperso em minha obra
suspira
agora meus sonhos são lembrança de
todos.
Centenas de livros
ficaram sem serem escritos
o do vento
o da água
o do fogo
para citar ao algumas elegias.
Te falo sobre computadores
controle razão e redes
ocidental esquizofrenia
do não estamos sós global
do não podemos deixar de
nos comunicar
de internautas arrobando a letra a
tradutora traidora
de uma realidade a outra.
Deixemos exercer
influa-me
são poucos os temas
e sempre os mesmos
uma palavra encerra mil
é só outro instrumento de
metáforas.
Meditemos
sobre a geometria do azar
inato elemento na natureza
temos que retornar a ele
deixamos esquecido.
Seguimos o sentido dos passos.
Diante do espelho do Ródano
trespasso o braço do homem a outra
dama
e vejo-os ir juntos
enquanto ela sussurra no ouvido
logo você saberá quem somos.
Número dez rue des Rois
Cemitério de Plain Palais
silenciosos param.
Aqui Borges sonha
que escolherá ser enterrado
jeito exterior de parque agradável
flores roxas para o olvido.
Quero só ser terra
repete
miscelânea de lama e pó
através de arvores ancestrais.
Entre elas
escolhe a uma If
será uma atalaia
rara conífera
de nome condicional
relembrado do verso kipliniano.
Oxalá possa sua folhagem
manter também
intacta a sua firmeza.
Épica milonga assoviada
ressoa triste
rua abaixo entre as fontes.
Iluminados sonhos
se despedem ao soar o ângelus
se confundirão
com sons de sinos votivos
em lembrança do peregrino.
Esplendor abençoado
prêmios naturais
fronte engalanada
de onde será eterno hóspede.
Borges sonha
que erguerá sua mão
se despedirá de sua amada Maria
este segundo sábado de junho.
O outro deambulará
para sempre
no cibercéu dos poetas.
 
Canto IX
 
A voz de minha mãe
me ninando tenta regressar
enquanto recita em castiço inglês
uma novela de C. S. Lewis
me agita me estimula.
Borges se reduz
se contém
desorientado entrevê
em meu sonho
tem que matar o dublê.
Todavia indeléveis palavras
melancólico umbral
de onde só os lábios dela
música amiga
procuram recuperar os verbos
da leitura feliz.
O despertar
vidência transitória
fragilidades flutuações
entre parágrafos de Out of the Silent
Planet.
A ordem pode surgir do caos
quem sabe
as bifurcações
são sempre impossibilidades.
Cada um chegará
a seu próprio epílogo
texto sempre inconcluso.
Fragmentada oscilação
essa da coragem de um falcão praieiro
refere imagens
filmes cíclicos
na mente.
O latino Horácio me ensinou
relembrou em mim em voz baixa
acerca da imortalidade do poeta
do outro
contraditória
terrena desgraça.
Usemos operações casuais
me exorta
é útil nesse parêntesis de vida
se esfumaçam determinismos
o importante é não sentir-se
alienado neste universo.
Despertar recordar
ressuscitar
infinitivos do eu
obriga-se Borges em mim.
Madre Leonor
voz desde a alma
continua lendo
anunciado que começa
a se tornar racional.
Definitivamente
os sistemas estáveis
são um subgrupo
dos instáveis
se quer acreditar.
Único e eterno viajante
de imediato
começa a se dar conta.
Desconsolo alegre
é o instante esperado
Borges me liberta de seu sonho.
Siga o seu
me diz
a poesia é um sem fim oscilante
cúmulo abundância e ausência
multidão e indivíduo pedestre
fragrância de rosa amarela
primeira luminosidade
prelúdio do crepúsculo.
Borges compreende
que compreende
e chora.