Querida Lucila, escrevera como se não houvesse nenhuma impossibilidade de Clarice Lispector ressoar as suas intermináveis indefinições acerca das experiências entre os humanos. E como eu desejei arrancar essa verdade até alcançar a perpétua intimidade sem ter o cheiro da morte confluindo em seu mistério diante das emanações elaboradas por outra familiaridade em decomposição. Eu não posso confirmar o que vi, como se o átimo que se demonstrara tão prudente quanto o reflexo ambicioso da eternidade impulsionada pelo cultivo da própria vulgaridade, arrebentasse a minha inútil visão rastejando nas faces sepulcrais. E o que me alivia é guardar o sorriso roubado, sem nenhum pudor aprisionado nas sucessões da carcaça cinzelando as máscaras venezianas, pois o pecado dos homens sempre é renovado sob a profunda ausência eterna. Tumulto estrídulo imaginando como seria o prazer de compreender a função de viver e nunca esconder todas as covas repletas daqueles sentimentos que almejam a eternidade da pura compreensão! Mas todos são tão medíocres, horrendos, ferozes e, ainda assim, eles prorrompem os outros que se submetem a solenidade das superficialidades; e os seres humanos se apressam para torná-los a emoção que se reconhece ao olhar num átimo esmerado, todos os infinitesimais percursos dos estilhaços caídos dos espelhos corrompidos.
Ó minha amiga, se você pudesse olhar o estado da minha alma, talvez sentisse admiração por si mesma, e toda a felicidade que dificilmente é conquistada por nós, essas mulheres que invejam, mesmo que enternecidas e orgulhosas e mortas; a facilidade, a serenidade, a exatidão impassível de todos os homens — ostentaria uma amável sombra sobre a minha vida —, esta que nem à morte trouxe o encerrar de todas as mentiras, como tudo o que julguei ser num mundo que tanto desprezo. E por que deveríamos pedir perdão quando somos demasiadamente sinceras? É então que os amigos se afastam, e a verdade que pensamos tê-la com a nossa frágil vaidade tão bem descrita em todos os sentimentos que se contradizem, volteiam novamente nas palavras de Clarice: a forma de viver é um segredo tão secreto que é o rastejamento silencioso de um segredo. E quando li suas palavras dominadas pela profunda desolação, quase a minha alma reconstitui os fragmentos do espelho, como se a impetuosidade pudesse trazer todos os nossos sentimentos ao encontro da resolução. E quem poderia negar se eu dissesse que Clarice também é digna ao mentir sobre si mesma, e até dessa alma asfixiada pela inerente instabilidade; possuindo a terrível ânsia de que não há nada nesse mundo, este que me traz tanto pavor, ou em qualquer luz naqueles reinos cósmicos, o meu ninho tão sonhado — que poderia satisfazer o que tanto busco, mas que não consigo compreender pela agilidade da transformação. E assim ela escrevera para sua secretária, Olga Borelli: sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades.
Eu também estou vivendo um momento de grande decepção com a natureza ambígua do humano, já não reconheço os meus amigos, a minha família, e toda a sujeira de Gatsby, lodo com o qual fiz penetrar nas covas desprendidas duma terra tão recôndita quanto a imundície dos passos daqueles que permanecem entre os mortos. Mas não tenho medo de me perder, de perder a fé, pois nasci perdida, e vivencio a fé que não possui uma simples força para envolver-me na beleza da tranquilidade de amar a todos, e esquecer todas as injustiças e inconstâncias. Nem amor, nem ódio, nem liberdade, e nenhum outro sentimento poderá formar o que realmente sou, porque nada me alcança, e nada me oferece a possibilidade de ser feliz. O que eu desejo ainda foi criado por Deus, e mesmo se ele criasse outros sentimentos, os mais nobres e desejados por todos, eu ainda seria a medíocre criatura revoltando-se ao deslumbrá-los com a extrema dificuldade de continuar satisfeita.
Mas espero com algum sentimento que me resta, este que é desconhecido até da inocência daqueles que o procuram; a perda do pudor de desejar que na hora da minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
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Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
Clarice Lispector
https://www.youtube.com/watch?v=YIJl-_ILQag
https://www.youtube.com/watch?v=Y9bYBQO62K4