ASSASSINATO NA AVENIDA CAFÉ


Falando francamente estas são as linhas que  não gostaria de escrever, o ocorrido que não gostaria de contar. Relutei, é verdade, mas  não pude fugir da quase obrigação de narrar o fato que, embora frio e brutal,   sequer foi percebido, mesmo por aqueles que moravam nas redondezas e obrigatoriamente cruzaram inúmeras vezes com o extinto. Sinceramente  não sei de onde a vítima veio, se para essa cidade o trouxeram ou mesmo se aqui nasceu, tomou forma e corpo. Mas que existiu, de acordo com as informações dos que a conheceram, é uma verdade inconteste.
      Algumas vezes devo ter passado por ele e, como sempre, no andar distraído ou apressado  não o notei. Só alguns dias atrás  me contaram o acontecido, tal como se deu, grosso modo, sem as minúcias que tanto fazem o prazer dos apreciadores de noticiários policiais.
      Curiosamente quando se fala de assassino pensamos logo em pessoas de olhar sombrio, carrancudas e de pouco prosear. Nada mais falso, pelo menos nesse caso. As pessoas que praticaram o delito são cultas, religiosas, aquele tipo de vizinhos que qualquer um adoraria ter, conversadeiras, amáveis, bem quistas e sociáveis. Tudo boa gente.  É uma pena mesmo que  tenham chegado às vias do fato com tão adorável e indefeso personagem.
     Bem, a família do extinto é conhecidíssima não só na cidade como nos vastos rincões brasileiros. Não ter ouvido falar dessa família  nem visto qualquer um de seus representantes é  quase impossível. São personagens fortes do romanceiro nacional, falados em prosa e em verso, representando quase que a alma de nossa gente.
    Já ouviu falar nos Tabebuias? Não? No Tabebuia avellanedeae? Pois é, ele mesmo, o Ipê-Roxo, esse irmão do Ipê-amarelo-cascudo e do Ipê-branco, este que sofreu no corpo o resultado da incoerência humana.
    Nasceu ou o plantaram ali mesmo, onde a Avenida Café cruza com uma rua da qual deliberadamente esqueci o nome. Cresceu, tornou-se arvore,  abrigou pássaros e insetos, abraços de namorados, despedidas de casais, deu sombra, flores e, dizem, era alegre e feliz. Devia sentir-se mesmo assim, representando com graça peculiar a estirpe dos Tabebuias, cobrindo-se de flores nos secos invernos num claro contraste as canelinhas, figueiras-benjamim, damas-da-noite e outras arvores que são plantadas nas calçadas das vias urbanas. Era um marco na avenida que, naquele tempo, nem calçada tinha de um lado..
    Porem um dia o Ipê, quem diria, cometeu um deslize. Permitiu que uma rajada de vento levasse  um punhado de suas  folhas. Era uma arvore de tamanho médio, sujeita as intempéries naturais. Mas o vento fez pior. Jogou as folhas nos quintais de casas circunvizinhas irritando, e muito, alguns moradores da rua. Uns não fizeram caso, varreram as folhas e só. Outros já começaram a notar que o Ipê existia e o que é pior, continuaria perdendo folhas, dando-lhes o árduo trabalho de varrê-las das bem cuidadas calçadas e quintais. Uns conformaram-se, fazer isso era um quase nada diante da existência prazerosa da arvore. Infelizmente para o Ipê nem todos pensaram assim e os que assim não pensaram, conluiaram, avaliaram, discutiram, deliberaram e chegaram ao veredicto final: - Era preciso matar o Ipê.
    Disseram-me que, nesse afã, os matadores perderam noites de sono. Não poderiam cortá-lo, forma simples e eficiente de exterminá-lo. Depois de perguntas, consultas, pesquisas e orientações junto a conhecedores do assunto chegaram à forma silenciosa e covarde de extingui-lo: envenenamento. Enquanto isso o Ipê continuava, graciosamente, a cobrir-se de  flores roxas e perder suas folhas.
    E assim foi. Não sei precisar o tempo demorado, nem quantas visitas os envenenadores fizeram sorrateiramente ao pé da arvore, derramando-lhe generosas doses do veneno. O quê o gentil Ipê deve ter sentido! Minaram-lhe as forças das raízes, seu tronco sentiu a pouca seiva, suas folhas passaram a respirar menos, os pássaros dele se afastaram, os  amantes também. E  naquela solidão dos seres abandonados  a própria sorte o pobre Ipê clamou por socorro.
Clamou sim, através das folhas amarelecidas, de galhos quase nus, do tronco com claros sinais de desgaste. Mas não o notamos, estávamos preocupados demais com valor do dólar, personagens de novelas, reeleições, recordes e tudo mais. Afinal por que olharíamos para uma arvore?
    O tempo passou, o Ipê definhou, já não tinha folhas para enraivecer seus algozes. Morreu ali só e triste, de galhos ressequidos e quebradiços. Quando a ultima gota de seiva o alimentou, a ultima folha desprendeu-se depois de aspirar debilmente um ultimo sopro de ar e o derradeiro passaro voou  de seu mais longo galho a natureza chorou e abraçou o  filho morto, fazendo-o  renascer sob outra forma e talvez um dia, infinitamente longe, retorná-lo  como o Ipê que amávamos e não sabíamos.
   Como gostaríamos de falar por ele se soubéssemos o que acontecia. Talvez ele ainda estivesse lá, sublime e altaneiro. Difícil é defender-se não tendo voz  mas, creio eu, se pudéssemos  tanto você quanto eu emprestaríamos a nossa para defesa daqueles que não a tendo impossibilitam-se denunciar as injustiças das quais são vitimas.
   Um funcionário municipal, certo dia, passando por aqueles sítios constatou: Esta arvore está morta.
   Foi cortada, serrada, transportada e posteriormente queimada.
   Há tempos era ainda  possível ver-se o que restou de seu tronco, cortado a rés do chão. Hoje não mais, estendeu-se concreto no local  e uma calçada cobriu-lhe a ultima lembrança.
   Ponderei com a pessoa que me contou o fato que talvez ali, como era costume quando do desaparecimento de alguém nas estradas e outras vias de nossos rincões, fosse colocada uma cruz.
- Seria assim, respondeu ela, um ato, digamos..., pouco cristão.
 

BUENO
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