DOR & CRESCIMENTO ( conto)

DOR & CRESCIMENTO ( conto)

 
 


 

Seus olhos denotam a emoção, recordações tristes e doloridas, mostrando, todavia, superação, enfrentamento de um fantasma sepultado, traumas vencidos. Sempre esboçando que o perdoara ao vê-lo acometido de câncer, nos últimos tempos de existência física. Mas, ainda bem, suspirava, que o compreendia a tempo de perdoar tanta infâmia, não confessada a mim, seu interlocutor. Talvez por pejo de uma vilania que ainda a constrange, e que, por respeito, não a inquiri, entendendo seu silêncio.
Por volta  de seus vinte anos, pensou matá-lo, procurou por uma arma para tal intento. Visitou um local mal afamado, onde grassa o submundo, mas, felizmente, não obteve o que queria, a aquisição de um revólver para praticar o homicídio.
A mulher a encará-la, a trouxe à realidade. Não esperava dela a advertência, pela qual agradece sempre que lembra. Fora comprar um objeto, onde havia, com certeza, de tudo o que é ilícito, não que não tivesse à disposição para a venda. Apenas, fitando-a, de cima em baixo, no dizer da própria, saltou uma pergunta despropositada, vindo de quem vinha, a esperar tudo, menos um conselho salutar:
- E para que você deseja uma arma?
- Quero acabar de uma vez com o meu padrasto, preciso de um revólver.
- Nada disso, esqueça dessa idéia destrambelhada, não estrague a vida dele e também a sua. Se a convivência é difícil, retorne, pegue suas coisas e saia de casa... Erga sua cabeça, não se estrague por quem não vale a pena.
Palavras que ela me confidenciou por mais de uma vez, sempre que temos a oportunidade de conversar, onde as lembranças retornam, e ela, agradecida pelo sábio alvitre vindo de onde menos se esperava.  

Por alguma razão aquela mulher estranha apiedou-se da jovem, talvez a vendo como uma menina insegurança e atordoada, a enxergando com um olhar maternal. Vivida e experiente naquele meio, viu que ela não pertencia àquele mundo, estava ali por confusão momentânea, era uma avezinha errante em região de perigosas aves de rapinas.
Retornou para casa, fez a mala e partiu para uma vida independente, cheia de contratempos, com uma mão atrás outra na frente. A mãe, compadecida, porém sem condições de ajudá-la financeiramente, naufragada em lágrimas e preocupações, sem atitudes a tomar, além de pedir a Deus que a abençoasse e que a mantivesse informada sobre seus passos, não a esquecesse nunca, pois a amava.
Flashes de momentos que me retornavam ao ver aquele homem debruçado sobre o corpo inerte da esposa, soluçando, sofrendo com sua partida, alguns bons anos após, durante o velório.

 
A personagem desta narrativa, já mãe de duas moças, no entreolhar com o meu, suspirou: Ele cuidou bem de minha mãe... Como uma declaração de alforria e de perdão pelo passado tenebroso e oculto pelo que ela havia passado. Amadurecida pelas adversidades e a maternidade, conseguia entendê-lo, traindo-se em um olhar de piedade e carinho, ao vê-lo sofrer com a morte da companheira de tantos anos, mãe de suas filhas. 
A mãe havia sucumbido com os anos, tivera uma velhice doentia, dividira-se com ela, a filha de outro relacionamento na juventude e as 3 meia-irmãs do casamento. Era uma relação conflituosa, intempestiva, cheia de altos e baixos, e acusações de ambas as partes, entre o marido e a enteada, tendo-a, a esposa e  progenitora, amargurada entre ambos. 
Uma sinopse de um filme não raro, fatos que conhecemos amiúde, dramas intramuros encerrados nas paredes de nome Lar. Seres que aprendem a tolerância pela dor, a angústia da convivência, potros selvagens adestrados pelas chicotadas das experiências dolorosas, geralmente orgulhos vertidos em sangue e muitas lágrimas. 
Certa feita, por curiosidade ou pelo instinto de ser reconhecida, fora visitar o pai biológico. Segundo contou, nem mesmo exame de DNA, não conhecido à época, seria necessário, tal a semelhança nos traços fisionômicos. Nada daquilo, todavia, fora motivo de emoções por parte dele, apenas indiferença e um mal estar que mal conseguiu disfarçar. Era menos que uma estranha, um incômodo a lembrá-lo na consciência suas responsabilidades não assumidas, quis vê-la pelas costas.
 

Por vezes, sentia-se sem uma referência, tivera um lar enquanto fora menina, porém logo se sentindo preterida no avançar da idade, dividindo a mãe com os bebês que chegavam, alimentando, talvez, as distinções das atenções do padrasto para com ela. Só depois de casada e mãe, dona de seu território, soube bem o que era ter um espaço seu, sem conflitos maiores.
Contou-me que o diagnóstico de câncer acometera o padrasto já amargurado pela ausência da esposa, falecida anos antes. Cabendo a ela resolver as questões mais corriqueiras, como a venda do imóvel, única herança, a ser dividida entre as quatro.  
Ele se fora, enterrando um passado tumultuado, absolvido pelo tempo, quando as verdades da vida, com suas marcas e feridas, nos faz mais condescendentes com os erros humanos... 


 

 

*** Selecionado para publicação em livro de antologias de contos, editora CBJE - Rio de Janeiro, RJ.