O ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS ( conto )

O ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS  ( conto )


A maneira de enfrentar as crises, impedindo que ela se enveredasse por labirintos pessoais inescrutáveis, tal qual uma âncora, mantendo-a fixada em uma referência, o velho álbum de fotografias a retinha em suas divagações. Bastava  deslizar suas  mãos naquele repositório de memórias  a levá-la em viagens pretéritas, manifestando em seu semblante suas emoções trazidas em cada imagem detalhando um tempo passado, sua história.

 A doença avançara drasticamente, cada vez mais a levando para dentro de si mesma, no isolamento impenetrável a terceiros. Encolhia-se em seu mutismo, sem permitir acessos a outros. O mal de Azheimer manifesto, a princípio pela apatia diagnosticada como depressão, tendo origem na morte do filho de forma inesperada. O choque fora fatal ao seu psiquismo, fragilizada para enfrentar a tragédia, refugiava-se em seu interior.

Brotadas águas do íntimo, mágoas levadas em enxurradas, superadas, esquecidas, ou guardadas na alma. O brilho nas retinas denunciando sensações trazidas ao avistar cada fotografia, demonstrações passageiras, amenas ou intensas, em gestos faciais, incontidas lágrimas escorrendo, molhando, denotando alegrias e tristezas. Único contato com a realidade que, feito ostra, ocultava a pérola racional, mantendo poucas relações com a atualidade dos fatos, quase imperceptíveis.

As páginas do velho álbum tinham a magia de trazê-la, por instantes mágicos, a manifestar-se, por vezes trocando palavras com algum interlocutor, nem sempre presente. Via-se menina, sorridente, feliz, cantarolando cantigas, sorrisos esperançosos a iluminá-la, aparentando sanidade, não fora o tempo vivenciado em outras épocas. Não raro, parecia entreter-se em diálogos com falecidos mostrados naquela seleção de saudosos. Raras oportunidades em que se dirigia a quem estivesse próximo, narrando suas memórias, embevecida, como se voltasse de uma viagem interior secreta e partilhasse seus conflitos.

Aos poucos  os parentes perceberam que aquilo a renascia, fazia-lhe bem, melhor que vê-la, apática, quase vegetativa, distante de qualquer participação. Aconselhados pela terapeuta que participassem  de suas alucinações, fazendo-a menos só em seus labirintos difusos, trocando a atualidade com o passado.

As cãs dos cabelos manifestando-se prematuramente,  o olhar ora longínquo e distante, por vezes revelando apreensões, necessidades de retornar às fantasias, como refúgio de não enfrentar a realidade. Pouco se deduzia, ao leigo, o que se passava naquela mente dividida entre as duas estações da existência, o passado e o presente.

Como se ela desdobrada, em torvelinhos, registrasse momentos anteriores, transportando-a a outros cenários, amenizando as chagas, limpando o verniz do passado, ressurgindo sentimentos represados.  Vivos no pretérito ajudando- a a não soçobrar de vez, acalentando razões para sobreviver e não se distanciar na perda total da razão.

Desmemorizadas lembranças revividas, como um outro universo, sem a dor da ausência a impedindo de enfrentar seu aguilhão de desconsolos.

Ao vê-la, sopitavam os devaneios, onde criamos asas, voando além dos limites, em cenários utópicos, matizes em cores vivas diferindo da ocre paisagem.  Nestas portas imaginárias, acalentando um porvir ajudando a vivenciar as rotinas alimentadas de esperanças, como crianças à espera do natal.  Ilusões dadivosas, colheitas de sonhos, muletas na travessia, luzes nas trevas dos dias. Companhia e alento aos sós, flores nos caminhos íngremes, noites em temporais suavizados, vulcão interior, incandescente e hostil apascentado na tolerância e a mansuetude da paz. Antídotos gestados pelo próprio organismo para se salvaguardar das intempéries devastadoras. Crianças ocultas em seus refúgios, fugindo de seus perseguidores de pernas de pau, no reino da fantasia.
Assim, adentrando o insondável, permitindo-se hipóteses, talvez inverossímeis para quem  não vivenciasse os fatos, mas necessárias para se entender um Ser prestes a sumir no varredouro da ilusão, perdendo conexões com a realidade. Talvez apenas restasse o corpo, pois a mente, aonde andaria ? 
Naquele solo árido, fantasias eram flores nos caminhos, margeados de espinhos, nutrindo a terra seca de fertilizantes naturais e coloridos. Na tela escassa de luz, desenhavam-se alegorias de vivas cores, incendiando de fervor e de vida o que aparentemente nada existia. Lágrimas substituídas pelos risos, permutas de dores por alegrias.
Como se fora a vida minguar de repente, sem ideais a perseguir, flutuando à deriva, feito um barco, tramas sem enredos em fatos inconcretos. Aquilo registrava a certeza de que se respirar é preciso, sonhar, por vezes, é imprescindível. Nem mesmo a bela paisagem, amena, serena, colocada à janela, a trazia de volta, bafejada as faces em aromas de flores, como um beijo, acompanhada no vento brando nas cortinas.
Figura muda, dissociada de seu momento, ausente. Os ares primaveris rescendidos na brisa morna, vestígios de alguém ou de outras épocas, respirados brandamente, exalados. Página a página, vagarosamente, repetidas inúmeras vezes, em cada receptáculo onde via- se um desfilar de ausentes presentes em seu mundo pessoal e enigmático. Fluídas lembranças, traços indefinidos como pintura abstrata, nostalgias impregnadas na vivacidade dos olhares repentinos e fugazes.
Suas expressões, contudo, pareciam mergulhar em um mundo auspicioso aos seus anseios, pois a revitalizavam, os olhos transmitiam euforias inefáveis e não compartilhadas. Voava livre, desimpedida de amarras, no céu das suas fantasias, em sorrisos maravilhados. Uma menina revivendo tempos felizes e remotos, ou a lucidez de um espírito antevendo o paraíso ? Tudo cogitações impotentes de quem a observava, tentando traduzir o que sentia com suas próprias deduções desprovidas de qualquer fundamento lógico. Como, enfim, aferir o encanto com a medida da sensatez ? Onde as soluções medicamentosas, paliativas, pareciam infrutíferas, tudo parecia válido, compreensível, assimilável.
Aquele conjunto de velhas fotografias amareladas era o seu referencial, mantendo-a vinculada a alguma noção de tempo e espaço. Sem ele, por certo,  a mente liberta vagaria em ignotas paragens, apenas a matéria plausível, envelhecendo, com pálidos registros das suas solitárias viagens desconhecidas...

 

 

 

 

 

texto selecionado para figurar na Antologia Contos de Inverno, editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE, Rio de Janeiro/RJ, julho de 2011

 

 

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, SETEMBRO DE 2011.