EFEITO COLATERAL ( CONTO )

De como podemos transformar sonhos em pesadelos, mel em fel.

A amargura estava estampada no semblante daquele homem, que, silenciosamente, deixava a casa e vagava pelas ruas, absorto em seu universo íntimo e angustiado.

Amaram-se, sim, não tinha dúvidas, mas apavorava-se a cada crise intempestiva de ciúmes, onde parecia que todo encanto visto na amada transformava-se em outra coisa, má, abjeta, horripilante... As discussões se amiudavam, já não eram esparsas e eventuais, controláveis, atingia as raias da intolerância... Qualquer pretexto era razão para o descontrole emocional, sentia-se vigiado pelo olhar severo, pelos mesmos olhos  que o seduziram e agora aprisionavam.

A princípio reputava a um  certo charme, de sentir-se querido, mas, com o tempo, asfixiava, precisava pisar em ovos para tratar de qualquer assunto, cuidando para não dar outros sentidos ou interpretações dúbias. As discussões acaloradas, intramuros, domésticas, começavam a ser tornar públicas, não importando hora e lugar. De natureza recatada, temia pelos possíveis escândalos.

Depois das crises, via na companheira alguém arrasada, implorando perdão pelos excessos, prometendo controlar-se. Compreensível, tolerava aquelas circunstâncias, acreditando serem passageiras.  A ajuda terapêutica sugerida  era vista com deboche ou menosprezo, não se reconhecia necessitada de qualquer apoio nesse sentido.

Na verdade não se via como errada.  Dona de um gênio forte, reputava a uma certa “intuição” que não falha, ou seja, se houve exageros agora, por certo já estava pressentindo o pior para depois, sempre assim.
Melhor que ele se acautelasse com esses “pressentimentos”, não toleraria desvios de qualquer ordem, que não olhasse com malícia para nenhuma outra mulher, haveria de ver com quantos paus se faz uma canoa... Palavras ameaçadoras brotadas  na boca tão beijada e desejada, parecendo de uma agressora inimiga.

Aos poucos, melindrado, cedendo sempre para evitar novas cenas deploráveis, passou a ser um homem antissocial e arredio nas relações pessoais e profissionais, refugiando-se no seu mundo. Em verdade, fechava-se em imaginárias paredes gradeadas, onde estava preso na aparente liberdade de ir e vir, era um exilado em si mesmo. Sua rotina,  da casa para o trabalho, um autômato, sem vontade própria, abdicando de qualquer entretenimento pessoal que não incluísse a esposa, a quem evitava convidar por temer os imprevistos.

A vida social foi escasseando, sempre desculpas para não comparecer a qualquer evento, até deixar de ser convidado, pois sabiam que recusaria de antemão, então, para não constrangê-lo, os colegas o excluíam. Ninguém externava, mas estava implícito de que algo não ia bem com ele, sempre isolado em seu mundo.

A idéia de abandoná-la o apavorava, não se imaginava fora da convivência,  o argumento de que se amavam pesava nesses momentos de decisão extremada, refreando atitudes de se separarem.Com os anos,carregava sobre os ombros o peso da vigilância, real ou imaginária, mas constante, mesmo na ausência dela. Como se estivesse vigiado o tempo todo, no proceder e no falar...aliás, percebeu-se falando baixo, arisco, olhando para os lados, como se murmurasse, com receios de ser ouvido.

A sujeição paulatina, a princípio para evitar confrontos desgastantes, depois como se consentisse com o martírio, fortalecia a algoz, cada vez mais ousada. Entre eles estabelecia-se uma neurótica relação de dominadora e dominado.

 Falava como se suplicasse, com receios desmedidos dos destemperos da esposa. Aniquilava-se, abstraído de si, entregue às circunstâncias, passivo e atoleimado.

Contudo, a sanha de quem tem o temperamento dominador não tolera os parvos e apáticos .eternamente, talvez por ver sua presa já entregue ao seu domínio, nada mais tendo de prazer no jogo, mas isso são especulações filosóficas...  Com o tempo, sentindo-se entediada, passou a menosprezá-lo, refletindo o próprio sentimento  nutrido por ele mesmo com a estima aviltada. De ciúmes virou para o desrespeito absoluto, tratando-o como qualquer coisa, menos o homem que amou, ou julgava ter amado.

 Da dominação total, surgia o descaso, como efeito colateral da posse doentia. Findava o relacionamento definitivamente. Morria qualquer atração dela por ele, que já não mais respeitava, julgando-o um pusilânime, covarde, palerma, que se submetia, passivamente, sem reações. A admiração ao outro é combustível para a atração, inexistindo de qualquer das partes, nasce a indiferença, irmã do desprezo.

“Homem tem que ser durão”, repetia o adágio popular. Quanto a ela, não suportava mais a convivência, afinal não fora com um frouxo que se consorciara, sentia-se enganada,  com quem perdera uns bons anos de sua juventude, queria a separação incontinente. Impiedosa e sarcástica, alegava que ainda tinha muita coisa para viver e não morrer aos poucos ao lado dele... “Isto acabou, o defunto está insepulto, vamos enterrá-lo de vez !”  Falava alto, referindo-se à falência da relação conjugal.

Andando em passos curtos, como se vagasse a mente em mil conjecturas, os olhos pareciam mortos, sentia-se sem rumo. De tanto ceder para que ela tomasse todas as decisões, perdeu-se em si, sem saber reagir ao rumo que as coisas tinham tomado, tampouco o que seria de sua vida sozinho.

Estava livre do domínio dela, como um pássaro cativo fora da gaiola,  teria que reaprender a andar, como a ave liberta treinando as asas, para acostumar-se com a sua liberdade...

** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.