A  VOLTA  (CONTO)

 

 
Nos passos dados, já distantes no tempo, ora retomados, vagando alheio, percorrendo devagar, perscrutando reminiscências. Era o retorno a uma terra amada, agora estranha, de pessoas diferentes, para quem era um estrangeiro a vagar em pegadas e olhares abismados.
  Os olhos percorreram a paisagem, parecendo afoito a buscar vestígios, reconhecendo o território. A expressão do rosto denotava seus sentimentos, sim, nada mais reconhecia... Até a si próprio percebia-se distinto daqueles moradores, nenhum rosto familiar, ninguém para perguntar de alguém, nenhuma referência a ser lembrada como pista...
 Foram quatro décadas passadas, um mergulho no tempo, no passado, tentando recriar um cenário já diluído, consumido, alterado pela modernidade ditada pelas necessidades da agora média cidade, não mais tão pequena como já o fora...
 Ausentes entes contemporâneos, correrias e folguedos na infância evolada nas espirais rememoradas em tempos idos, lembranças pessoais esvaídas, marcas apagadas, esmaecidas, nada mais lembrando o que foi um dia...
 
  Sofrida sensação de se sentir um visitante naquilo que lhe pertenceu, cenários de seu passado, nas mais ternas das recordações, parecendo ainda ouvir o som do alto-falante anunciando eventos, noticiando óbitos, comercializando produtos e tocando músicas que ainda vibravam vivas, intensas, nos ouvidos. Sons que,  ouvidos ocasionalmente, traziam vivas as emoções da infância e pré adolescência naquela terra vividas.
 
 E o velho casarão, o cinema da cidade, onde assistia às matines nos duros bancos de madeira ?  Eram filmes registrados na memória, com suas canções, personagens, estórias latentes, que emergiam criando um cenário justaposto ao visto, apenas imagens , inexistentes na atualidade, imaginárias, palco único mantido em sua memória, na solidão de suas lembranças.
 
 A luz dos postes de madeira, clarões foscos, amarelados,  no início de sua chegada, fornecia energia elétrica até as vinte e três horas, através de um gerador,  depois apenas a bruxuleante iluminação das lamparinas de querosene ou lampiões a gaz , as ruas eram iluminadas pelas noites de lua em um céu em que reverberavam constelações de estrelas...
  Nítidas as imagens da comemoração da estréia da luz elétrica, com seus postes de cimento, o cortejo de carros barulhentos, com suas buzinas acionadas, comemorando o advento da modernidade que surgia...
 
No passado, uma avenida principal, demarcada nas extremidades pela igreja católica, então de madeira, a cruz enorme, o átrio e o coreto, a missa da primeira comunhão, os flertes inocentes durante os sermões do padre, cabelo escovinha, alemão austero...
As procissões dos fiéis em filas indianas, com velas à mão, em cânticos saudando os Santos,  levados pelos párocos sobre os ombros em altares suspensos, quem não participava, acompanhava das calçadas, mobilizando todo o povo.
 
  No outro extremo da extensa via de duas pistas, a escola estadual.
 Além do educandário público, adentrando nas quebradas do matagal, conhecido como Picadão, por ser  uma verdadeira clareira cercada pela mata, ocultava um conjunto de casas de madeira, onde hospedavam as mulheres que recepcionavam os casados em suas escapulidas extraconjugais, e os solteiros. Aos  meninos restavam as curiosidades de saber o que se escondia naquele conjunto habitacional tão procurado e comentado.
 
 Celeiro de escândalos, as "moças"  adentravam a cidadela em charretes cobertas, despertando comentários e chamando a atenção dos transeuntes. Mulheres vestidas com roupas ousadas e vistosas nas padronagens dos tecidos, além das maquiagens fortes e acentuadas.
 
 Moradoras exóticas ao ambiente, com meios de locomoção próprios, tocados por cavalos. Volta e meia, os noticiários febricitantes das línguas do vulgo davam contas de que fulano ou sicrano foi recebido a pauladas por suas dignas esposas, após inconfessáveis aventuras. Engraçado era vê-los, contritos, se penitenciando nas missas domingueiras das façanhas mundanas da semana... Nada que passasse despercebidos pelas antenas falantes das eméritas filhas de Maria...
 
 Por vezes, amargava a sensação de também ele ser uma personagem irreal em busca de uma realidade inexistente, plasmado no seu ´íntimo, um outro mundo, diverso do que via naquele retorno...
 Voltava a uma terra estranha que julgava ter conhecido, página virada de sua vida pessoal, onde vivera parte de seus principais anos, mas não mais se reconhecia, estava deslocado, desalojado de suas origens.  
 Sentia-se como alguém sem história, sem raízes, um viajante jovem que dali partiu um dia para uma cidade imensa, cosmopolita, onde, com os anos, foi perdendo suas características interioranas, seu jeito peculiar de falar, eventuais expressões idiomáticas ou sotaques, pulverizados na miscelânea  aculturada da megalópole, mãe hospedeira de milhões de filhos, de diversos estados do País, num emaranhado de culturas diversas...
 
  Por certo, os registros da escola pública atestavam sua existência  passada por lá, apenas papéis não desmentindo ser ex habitante, confirmando suas reminiscências e lucidez...
 
 Quanto ao mais, até a rua que tanto lhe pertencia em suas aventuras e afetos, restava um número, a ele se figurava como um estranho...
 
 
 

TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, RIO DE JANEIO/RJ, EDIÇÃO ABRIL DE 2011