O hóspede antropofágico

Ontem, ao cair da noite,
Já quase findo o verão, pois que ainda morna,
Subitamente eis que bate à porta
Um hóspede, feito vendaval, tamanho açoite.

E sem que palavras dissesse,
À casa branca do homem adentrara;
O que era passageiro se estabelece,
Tornando a escura varanda do ser, clara.

Alonga-se o diálogo notívago
Entre o homem e o hóspede inoportuno.
Nos despropósitos das palras incipiam-se os motivos
Que nutrem os anseios do lépido gatuno.

Em incontáveis personagens transfigura-se:
À claridade dos dias, apresenta-se poeta.
Todavia, seus sermões noturnos tal profeta
Atordoam o homem de mente e alma já confusas.

Engole as horas matutinas feito mágico
A alimentar-se das labaredas de fogo.
Bole, no homem, c’o espírito e c’a razão e c’o corpo
E o consome a língua longa do hóspede antropofágico.

O que, por caridade, era visita inesperada
De uma noite tão somente,
Fez-se da vida do homem definitiva morada.
E toma partido de tudo que ele sente.

Até come no mesmo prato.
Feito parasita, suga sua seiva.
O homem agora nota a peleja
Que seria viver sem tê-lo hospedado.

Pura simbiose c’este hóspede invisível,
Que, embora, contrário à sua vontade,
Alimenta-lhe de paz e de felicidade,
Pois que torna seu mundo risível.

Agora são um só ser:
O hóspede antropofágico e o anfitrião.
Trouxe-lhe tantas bênçãos e graças de viver,
O amor, este cara, quase sempre sem educação!
Curitiba, 28/06/2004