PESADELO SURREAL ( CONTO)

PESADELO SURREAL ( CONTO)



Estava enfeitado, vestia uma roupa própria para os dias de domingo. Assim era o costume naquele lugar. A melhor roupa para se ir à igreja.

Retinha um sorriso, algo angelical, se assim se poderia dizer, sereno. Na lapela do paletó um cravo branco.

Pessoas, quantas, me vieram ver.
Uns choravam, outros comentavam, alguns se calavam contritos.

O cão do vizinho, solidário, impertinente a estranhos curiosamente não ladrou.

O ar pesado da sala e as moscas persistentes pousando em minha face fria. Uma senhora diligente e bondosa, livra-me delas colocando um véu transparente sobre mim.

Queria dormir e não conseguia. Uma criança nova, cansada, chorava. Alguém lhe dava o bico e só a voz enfadonha do velho se fazia ouvir.

Passava o café para todos e não me ofereciam. Esperavam. De vez em quando alguém olhava o relógio e permaneciam circunspectos, calados ou sussurrando ladainhas ou reservadas conversas entre si.

Uma mão compungida apertava de leve meu braço esquerdo e soluçava discretamente. Esta cena se repetia com frequência perturbadora.
Os minutos demoravam a passar. Percebia nas faces o cansaço de uma noite insone. Abrem a porta da cozinha e ouço um gemido alto, soluçante.
Uma mão enrugada me livra dos insetos, atraídos, provavelmente, pelas flores que ornavam aquele tétrico espetáculo e me davam tremores assustadores.

Via o meu rosto pálido, inexpressivo, indiferente às moscas e aos presentes.
Um galo cantava no terreiro ao lado, princípio da madrugada. Alguém se traía num bocejo, retira o lenço do paletó sisudo e passa pela testa molhada. Uma criança volta a resmungar baixinho, incomodada no colo materno. A mãe se retira com ela para não atrapalhar o silêncio.
Um choro inopinado se rompe de repente. O velho orador consola o infeliz. 

Detenho-me a olhar uma fotografia, já amarelada, dependurada na parede de madeira . Sou eu, 10 anos. No aniversário da cidade, no desfile, vestiram-me de escoteiro, trago um leve sinal de sorriso. Entendo. Vivia calado. O detalhe interessante são os olhos, não deixam esquecer que sou triste. Com a foto me vêm a lembrança de uma música. Uma tarde, um pé de goiaba, a Aquarela do Brasil.
Quando tudo é silêncio, as recordações se tornam mais nítidas, mais vivas. 

Uma barata, surgindo pelas frestas da parede, passa sobre o quadro, me arrepio.
Canta o galo novamente. O dia desponta levemente. Alguém cutuca o velho sonolento que cochilava. Ele se embaraça e pede desculpas com um sorriso sem graça, e sai. Saem dois, ele e outro. Pelo que se ouvia de dentro, eles organizavam os preparativos para a saída do cortejo. Muitos se achegaram até o portão e aguardaram, já que a sala era pequena.
Abriu-se a porta da cozinha, e por ela entrou minha mãe desfeita em dor com o peito sem lágrimas como os seios secos que um dia me amamentaram. Atirou-se sobre mim inconformada. Algumas senhoras a levaram dali.

Aproximou-se um parente e colocou um livro de orações entre meus dedos rijos e cruzados, como se eu pudesse ler naquelas condições.

Após, fêz-se escuro. Fecharam o ataúde humilde, e, finalmente, dormi.

Soube depois que fui levado por quatro homens, suspenso na altura dos ombros, pelas ruas da pequena cidade. O comércio, por respeito, cerrou as portas. Os velhos tiraram os chapéus e as senhoras fizeram o sinal da cruz à passagem do féretro.

Muitos seguiram a pequena comitiva.

Só o cão, triste, ladrou...


* CONTO ESCOLHIDO PARA FIGURAR EM CONTOS FANTÁSTICOS, EDIÇÃO JANEIRO 2010, DA EDITORA CBJE, DA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA FOLHA LITERÁRIA DO COL. ESTADUAL FIDELINO DE FIGUEIREDO, SÃO PAULO, CAPITAL, EM 01/11/1977, COM O TÍTULO: " HOJE, O HERÓI SOU EU".

 

*** Selecionado para publicação em livro de antologias de contos, editora CBJE - Rio de Janeiro, RJ.